sábado, 1 de junho de 2013

Os cafonas mostram o outro lado da história.



O caso recente envolvendo o cantor Amado Batista foi uma coincidência tão interessante que me impulsionou a retomar os trabalhos neste blog e a criar um novo tópico nesse retorno, que será dedicado a comentar livros. A coincidência é que um artista de grande sucesso, arrebatador de vendas e shows lotados revelar sua experiência com o Regime Militar, inevitavelmente me remete a obra de Paulo César de Araújo, cujo livro estou apreciando no momento, já em suas últimas páginas. “Fui torturado e mereci”, assim disse Amado Batista, um dos maiores porta-vozes da paixão e da dor do povo brasileiro. 

Julgo um momento de inconsistência, um artista soltar uma revelação dessas. Mas, além de não me conformar com alguém que se entende merecedor de torturas, me surpreendeu a repercussão que tomou o caso e um possível espanto ao associar o artista com a repressão: “Amado Batista torturado? Com que motivo? Ele era comunista? As dúvidas e as insinuações são enormes. 

Mesmo não sendo músico profissional na época, o perfil de Amado hoje não condiz com o perfil esperado da resistência e isso nos remete ao que outros artistas do  grupo da canção romântica vivenciaram nesse período.  Paulo César de Araújo nos revela em boa obra que as canções de protesto estiveram muito além da MPB de Chico & Caetano e foram parar no mundo do som cafona, que vendia milhões discos, arrebanhava grandes públicos e nunca foi tão simpático com a crítica.

Nada mais do que um incômodo. Foi exatamente isso que moveu Paulo César de Araújo, natural de Vitória da Conquista, interior da Bahia,  a escrever o livro “Eu não sou cachorro, não”.  A infância e adolescência foram construídas num cenário típico da periferia regional do país nos anos 1970. Sem televisão e muito ligado ao rádio, o menino Paulo teve sua  formação musical guiada, inicialmente, por uma geração de artistas liderada por clássicos “cafonas”, como Waldick Soriano, Odair José, Nelson Ned, Paulo Sérgio e Aguinaldo Timóteo, conterrâneos do autor, cúmplices da experiência de vida e grandes cronistas da trajetória sofrida de milhares de brasileiros.


Era impossível não perceber que por trás daqueles sucessos, que embalavam garimpeiros, cortadores de cana, empregadas domésticas e migrantes, não houvesse algo a se descobrir.  Assim que ingressou na Universidade para cursar História, na Universidade Federal Fluminense, Paulo César percebeu que não havia uma linha escrita a respeito desses artistas. Tão famosos e queridos pelo interior do  país, não passavam de anônimos para a historiografia e um absurdo estético para a academia, uma vácuo nas ciências sociais e na história. “Quando ingressei na faculdade e me interessei pela história da música brasileira, constatei que aqueles cantores não estavam representados na historiografia. Eu me formei em História na UFF e Jornalismo na PUC. As pessoas falavam sobre bossa nova, tropicalismo e samba de raiz, mas nada sobre os bregas. É como se eles não tivessem existido.”, declarou o escritor em entrevista a Revista Brasileira de História da Biblioteca Nacional, em Outubro de 2008.



Mais incomodado ainda Paulo ficou quando descobriu as aventuras e o tom transgressor desses artistas durante o Regime Militar e o incompreensível silencia sobre essa história. Destacando-se na Saara das canções de protestos, um elenco extenso liderado por Odair José e Aguinaldo Timóteo sentiu o peso, a intolerância e a cegueira da censura. Para os ouvintes e pesquisadores, esse universo era propriedade das estrelas da MPB, talentos incontestáveis, mas que tinham suas obras desconectadas das angústias populares e, muitas vezes, escreviam em nome de movimentos e grupos de cultura. Daí a constante recorrência,  na memória musical brasileira,  a reverência a Chico Buarque e Gilberto Gil, Caetano Veloso e Milton Nascimento, como consagrados artistas da resistência. 

Argutos compositores que ficaram famosos pelas letras repletas de frestas, recurso que os compositores utilizavam para driblar a censura, e donos de uma excelente técnica e precisão no combate político, esses rapazes não foram os únicos que compartilharam do sofrimento da censura. Outros artistas,  que passam pelo esquecimento por causa do estilo popular e não erudito de suas produções, também estiveram na posição de censurados. 

No cuidadoso e minucioso livro “Eu não sou cachorro, não”, Paulo César de Araújo retira do esquecimento figuras históricas do imaginário popular brasileiro – sobretudo do interior -  reinterpreta o conceito de música cafona e música de protesto e lança luz sobre uma questão muito curiosa: por que uma elite acadêmica, que forma o hall dos críticos, excluiu da História da Cultura Brasileira o brega ou o cafona? Para o pesquisador, a resposta está na formação social desses críticos, que ocupam um espaço diverso do universo social que formou o grupo dos cafonas.

A revelação dessa outra face do brega vem com rigor. Tomando como referência a vigência do Ato Institucional N° 5, que foi um aparelho jurídico utilizado pelo regime para aumentar a repressão aos movimentos de resistência e oposição ao Estado de exceção Militar, o livro aborda o desafio de artistas populares ao lidar com a essência de dupla repressão: a política, que direcionava sua força contra ideias e ações de plano ideológico, e a moral, que interceptava qualquer desvio de comportamento diante daquele padrão estabelecido pelos militares.

O exercício do livro é contextualizar a repressão. A cada canção lembrada, que, à medida que os episódios se sucedem, aparece com profunda nostalgia para alguns, revela um pouco do clima dos porões e dos escritórios, das ruas, das casas e das universidades naquele período. Paulo César mostra como o brega tratou, sem constrangimentos, de anticoncepcionais, relações homoafetivas, prostituição, desigualdade social e, claro, do amor.  Canções como “Tortura de Amor”, de Waldick Soriano, e “Pare de tomar a pílula”, cantada por Odair José, que foram interpretadas como inofensivas e cafonas pelos críticos,  naquele momento foram podadas, adulteradas e, para não perder os costumes dos fardados, absolutamente proibidas. O motivo? Apensas um: censurar manifestações artísticas que incentivem a desordem e que firam a moral e os bons costumes. 


O escritor não poupou esforços para interpretar e apresentar a dimensão exata para  o leitor do ambiente repressivo, que era, de fato, inflexível, arbitrário e absolutamente sem critério. Censurava, muitas vezes, pelo simples ato de censurar e exercer o poder. Sem a exaustão acadêmica, muito menos a superficialidade comum aos formatos jornalísticos, Paulo esclarece quais são as ideias que circundam a censura, identifica historicamente seus atores, apresenta – pela primeira vez na historiografia brasileira – as vítimas desse sistema repressivo e descreve, numa narrativa crescente e quase cinematográfica, os casos e as visitas dos artistas ao DOI-CODI.

A obra torna-se clara a quem se interessa pelo assunto pelo seu tom inédito e pela capacidade de misturar, num mesmo espaço, a atração das anedotas e a substância dos embasamentos teóricos, alguns oriundos da história, outros da comunicação social. O método foi bem rigoroso. Em sintonia com uma investigação detalhada nos arquivos espalhados pelo país, Paulo César fuçou vários sebos em busca dos discos com versões originais de canções censuradas e entrevistou os próprios personagens do livro, que recordam, conforme sopra o vento da memória, os tempos do AI-5, o início da carreira, o convívio com a censura, as intenções das letras e, claro, o reconhecimento do sucesso.

“Eu não sou cachorro, não” foi publicado em 2002, mas foi fruto de quase doze anos de muita investigação. A obsessão daquele homem que foi engraxate no interior baiano era conhecer a fundo a história de seu ídolo, considerado um rei da música popular por muitos brasileiros – Roberto Carlos. Essa iniciativa o levou a essa pergunta sobre os “excluídos” da música brasileira, que acabou se tornando o passo essencial para o seu trabalho de doutorado. Em paralelo aos estudos acadêmicos, o escritor continuava sua batalha em busca do seu biografado.  Driblando as dificuldades financeiras e de comunicação dos anos 1990, ele conseguiu chegar até artistas inalcançáveis, como João Gilberto e Tom Jobim,  para tratar da estrela da Jovem Guarda e adquiri novas versões sobre a história de Roberto. 


O faro para a novidade é uma característica que formou o Jornalista Paulo César de Araújo, e a formação em História lhe deu um chão importante para entender a dimensão de suas dúvidas e, na missão de dirimi-las, esticá-las historicamente, para evitar conclusões anacrônicas, impulsivas e rasas. A música é o grande ensejo de sua obra. A biografia de Roberto Carlos é uma prova disso. A ânsia de conhecer um ídolo e a preocupação de situá-lo numa estética, numa ambiente político e entende-lo como fruto do seu tempo permaneceram unidas no trabalho do jornalista e historiador. O livro, com pouco tempo de publicado, em 2006, acabou sendo censurado pelo próprio biografado, numa batalha jurídica que vem até hoje.

Em tramitação no Congresso Nacional, um projeto de Lei que dispõe sobre a liberação de biografias não autorizadas  retoma a esperança de Paulo César Araújo de mostrar para todo o Brasil quem é Roberto Carlos, afinal. Recentemente, em entrevista a Carta Capital, o biógrafo abriu mais uma vez a polêmica ao afirmar que pretende relançar a obra que traz, em detalhes, a história de vida do compositor de sucessos como Detalhes e Côncavo e Convexo. Enquanto não encontra uma editora corajosa para colocar de volta nas livrarias a obra censurada, Paulo César de Araújo pensa em lançar um ensaio contando os bastidores da investigação da vida de Roberto Carlos.

Seu trabalho volta aos debates com a polêmica declaração de Amado Batista a respeito de suas experiências com a tortura. O clássico “Eu não sou cachorro, não” revela muitas faces da repressão, que girou em torno da perseguição política, mas também efetivou-se por outras intenções, entre elas a censura moral. Apesar de o cantor de sucessos como “Secretária” admitir que mereceu o tratamento violento do Regime Militar em virtude de sua contribuição com membros da esquerda, a obra de Paulo César também revela como uma parte da sociedade não compreendia o movimento do golpe de 1964 e seus posteriores engrossamentos. Em síntese, uma obra ilustrativa, bastante reflexiva sobre um determinado período e que repensa, sobretudo, as decisões de nossa historiografia, que determinam, no seu alcance, o nosso passado e o nosso futuro. 





terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Agora, sim: Feliz 2013!

Já estamos acostumados aqui em Recife. Seja em Março ou em fevereiro, o Carnaval nos anuncia o ano, de fato, novo. O dia 31 de Dezembro é um tradicional ensaio do que virá pela frente, com muita ponderação, amor, champanhes...Bom, nem todo mundo cumpre esse script tão requintado de final de ano. Ensaiam, pra valer, o que vai ser a tal festa à fantasia que lota a cidade. A tal inebriante festa da carne.

É natural creditar às cinzas da folia a condição de um ritual de passagem. É como o espírito alemão, retratado por Modris Eksteins em seu "A Sagração da primavera", às vésperas da  I Guerra Mundial. Eram necessárias explosões e mortes para que o geist alemão, que era uma demonstração de uma ruptura promotora da modernidade, pudesse vir á tona.

O recifense precisa de um Carnaval para a vida vir à tona em um novo ano.

São necessários os quatro dias ininterruptos, porêm não enfadonhos, de uma obrigatória felicidade, uma constante e inabalável animação.

São dias em que é possível vestir-se e ser o que se sonha, pensar o impensável, pagar o impagável, falar o impronunciável.

Adora-se o sol como se ele não queimasse. Há quem goste de caminhar nas sombras, pulando de camarote em camarote, mas que não resiste ao povo todo, em um coro só, homenageando eternamente Olinda no mágico Hino do Elefante. Haja garganta e coração pra tanto canto.

As meninas e os rapazes, que emprestam suas belezas ao mundo folião, alargam os passos quando Vassourinhas – mesmo desafinado – arrasta o povo nas ruas apertadas da Cidade Alta. É um levanta, defunto!  tiro e queda. Não há aglomeração que não exploda ao primeiro som.

São dias em que é possível, e necessário, por em prática a sua criatividade. São dias em que, simplesmente, se esquece. Passa-se da hora, rir-se das quedas ladeira abaixo, compete-se em maratonas hilárias atrás do táxi e do ônibus no terminal do Cais Santa Rita.

São dias em que se perde o caminho de casa. São dias em que se resolve esquecer quem se é e mudar o destino de tantos anos.

São dias em que se cultivam melhores amizades com turistas que ficam anestesiados com tanta alegria condensada e partem, na quarta-feira de cinzas,  profundamente nostálgicos e tristes.

São dias em que se apagam mágoas, antigos rancores e findam-se dores de um amor mal terminado. Descobrem-se traições, sim, ninguém é perfeito. Mas também revelam-se lindas paixões, atraentes romances e sólidas amizades.

São dias de lirismo, amor ao Recife, estufar a camisa com a bandeira do estado de Pernambuco. São dias de fundar um bloco, porque colocar um bloco na rua, aqui no Recife, é uma forma de contar alguma coisa a alguém, seja lá qual for o assunto. Quem tem um bloco já tem muita coisa na vida.

Não seria, de forma alguma, exagerado acreditar que depois de todas essas possibilidades, nas cinzas de todas as alegrias, o recifense olhasse para os fogos da apoteose desta terça-feira, respirasse fundo e aliviado, e fosse tomado por uma certeza renovadora, enxaguando a alma de alegria: agora, sim, 2013. Tu és um ano novo! 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Os olhinhos imprudentes ou O cheirinho da burocrata.


Que não me xinguem por aí de cafajeste, cafona ou machista. Apedrejem, mas sem rancor ou títulos inoportunos. Por isso, antes de começar, de fato, esta croniqueta, um aviso a tod@s @s navegantes. Parafraseando o tal Buarque de Holanda, não me levem a mal, me levem á toa, mas, por favor, não pela última vez.

O meu assunto é por demais sincero. Merecia como retrato do texto um gráfico, um balanço comparativo dos últimos anos, mas não sou tão inteligente e confiável assim. Reza uma lenda de que para transformar uma mentirazinha em algo mais convincente basta usar gráficos. Todo mundo acredita.

Para o meu tratado de hoje, uma descrição qualquer já basta. A análise é fruto das ciladas que quase me envolvo por causa da imprudência dos meus olhinhos. Nos últimos tempos, eles têm me feito pagar caro por esse senso observador mais aguçado. O par de retinas tem se apaixonado depressa pelas aparências femininas que cruzam as ruas do Recife, as divinas damas anônimas, que desfilam nesse asfalto tentador.

O DataContos vem reparando nos mínimos detalhes. O carnaval vem chegando e me aparecem as diabinhas, as enfermeiras, as jardineiras, cultivando uma liberdade existencial tão atraente que nos convencem que a beleza termina apenas ali, na fantasia. É um negócio louco de deixar nas alturas qualquer Sr. Folião Olindense. São craques no riso fácil. Joga 10 na simpatia. Tem piadas prontas, rimando com a vestimenta, muitas vezes se esquivando de uma olhada imprudente de alguém.

Também não poderia esquecer da singela beleza daquelas que não ousam fantasias profissionais. São mais tímidas e se conformam apenas com uma blusa adaptada, um retoque na maquiagem e aquele nozinho sacana, que deixa metade do umbigo exposto. Deixa em segredo um abdômen sedutor. Pura crueldade pra quem tem uns olhinhos ácidos e imprudentes.

Mas esses olhinhos, esses privilegiados observadores das damas do Recife, não se contêm apenas com o período de momo e se desandam por outras fases, por outros rostos e outros momentos. Exalam curiosidade, lacrimejam olhares trovadorescos, exaltando um amor cortês pela fêmea desconhecida.

Lança piscadas enviesadas para as universitárias. Destemidas e libertas, figuram na paisagem como uma ode a democracia do olhar. Desfilam soltas, sem calor, tabelam os passos na trajetória do vento, sem o mínimo esforço na sandália rasteirinha.
Suas saias longas provocam outras olhadas imprudentes com seu balé sereno, com os decotes que aparentam o mau gosto de tão gastos.

Ah, essas moças, divinas moças inquilinas do olhar mais investigativo. Dispersam qualquer leitura nos ônibus ao cruzarem todo coletivo. Desembaraçam o cobrador na hora do troco, se desfazem da catraca e humilham meus olhares mendigos, desejando o repouso daquela silhueta passageira, apressada por fugir do foco dos olhares imprudentes.

Não. Não serei injusto de esquecer e excluir desta ode a “burocrata”. É aquela estagiária-executiva, que se põe em blazers, vestidos longos e saltos altos. São as corajosas que embelezam escritórios, habilidosas em pareceres, que escrevem relatórios à mão escondendo um riso sacana por trás do cabelo que faz cortina nas bochechas rosadas pela maquiagem. As burocratas, entendidas de A a Z, sacam os por menores dos protocolos e amansam qualquer agonia de um estagiário-donzelo-estreante do departamento.

Ah, o cheirinho das burocratas. Inconfundível. É um misto de perfume, suor e bronze da hora do almoço, quando ela aproveita e entrega um documento em outra repartição. Cruza as pontes do Recife naquele malabarismo dos saltos, assanhando-se com os ventos machos do Capibaribe, torrando a pele numa charmosa e invejosa Rua da Aurora.

São as damas que esses olhinhos imprudentes não resistem. Trovadores e amantes, cometem a audácia de não se decidir de qual destas aparências, “que toda plebe deseja”, combina melhor com seu projeto de vida,  e voltam a olhar outras damas desse meu Recife.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O mofo não pega a fantasia.


A maior dificuldade do mundo é encontrar um pernambucano concentrado em alguma atividade que não seja pensar no carnaval. Esses dias de janeiro, ensolarados com a benção dos santos litorâneos, já são de extrema ansiedade e articulação ébria.

Desde novembro, salvo algumas exceções, todo recifense já sabe de cor a programação dos blocos, prévias, arrastões, banho de mangueira e putaria nas ruas da cidade até março.
Uma pesquisa inútil encomendada pelo blog identificou, junto as ineficientes operadoras telefônicas, um aumento significativo de mensagens curtas e grossas, geralmente encomendando uma festa ou soltando piadinhas.

Para apimentar a situação, a CBF resolveu emplacar de vez uma competição há tempos fora de moda: a copa nordeste. O resumo da ópera é que, todos os dias, é dia de festa. Comemoram-se os capricornianos, a vitória do clube preferido, bebe-se pra resolver os últimos detalhes do bloco, dana-se em alegria na prévia. E a concentração é posta no bolso, como umas férias improvisadas. Nesse caso, não há demissão porque o chefe passa pela mesma empolgação crônica do período, tentando disfarçar o relapso atrás de uma seriedade fajuta e cômica.

Fevereiro chegou. A madame e o cabra já  podem desentocar as fantasias. São máscaras, camisas, tintas, lantejoulas e demais objetos que nasceram, simplesmente, para o carnaval. Na hora de tirar do baú aquela fantasia, junto vem a memória dos carnavais: os beijos roubados, o porre animado com a turma de sempre, o escorregão na ladeira da misericórdia quando choveu no sábado de carnaval de 2007; vem com um susto o carnaval em relacionamento sério, a ponderação, o friozinho na barriga que dar ao lembrar de alguma coisa bacana, emocionante, e em breve afinam-se, elegantemente, na memória os primeiros tons de um Vassourinhas, Hino do Elefante ou Come e dorme. 

Surge tudo de uma vez só. A tendência é selecionar as memórias que encaixam perfeitamente na roupa que se planeja para 2013. Vai adornando com o espirito atual, retoca com aquela ingenuidade do primeiro carnaval e aquece com as prevenções de um veterano das ladeiras olindenses. Retalha com  o seu próprio desenho, com o  seu disfarce casual, imaginando ser o que sempre sonhou pelo menos durante os quatro dias. Aqui, o figurino é á altura de um grande palco onde o povo é o artista. Permite-se essa imaginação porque, felizmente, na alegria de brincar a fantasia nunca mofa. Aqui, em fevereiro, nunca é sem tempo de ser o que se sonha. 

domingo, 13 de janeiro de 2013

Meu escritor favorito em apuros.


Jamais esconderia que tenho meu lado tiete. Claro, também sofro problemas comuns e mortais. A diferença básica é que por quem nutro um fanatismo tímido e silencioso a humanidade sequer indicaria ao posto de funcionário do mês. Pacatos, mas eficientes ao meu modo de ver as coisas, meus favoritos caminham estradas alternativas na jornada da vida.

Uma vez não contive a emoção quando enxerguei, de longe, um volante do Santa Cruz. Cutuquei a querida Lia, que torce, sem a mínima informação, para o Sport, e apontei para o craque do meu clube. Ela, assumindo o perfil do adversário indiferente, fez cara de como se o grande volante não jogasse nada. “Peraí, pô”. É o volante do Santa Cruz. “Você tem ideia de quantas bolas ele evitou de chegar a grande área tricolor?”, perguntei indignado. Sem dar brechas, mandei outra: “você sabe que, depois dos atacantes, ele é o artilheiro do clube?”.

Não teve jeito. Era como descrever uma cor pra quem não enxerga. Sou tinhoso com essas coisas de reconhecer pequenas contribuições ao mundo, garimpar bons e apagados talentos. Na literatura, já não sofro muito disso porque também não há uma competição às claras entre talentos nas letras. A disputa fica por nossa conta, ácidos e impávidos fãs competidores.
Compramos brigas a todo momento quando nosso ídolo entra numa roubada. Inventamos histórias, alteramos documentos de identificação, tomamos sereno em filas enormes ou derretemos – como é costume nas últimas semanas – num sol recifense.

Acontece que a literatura ultrapassou suas fronteiras instrumentais e se agasalhou na rede mundial de computadores. Novos suportes, nova linguagem, que também nos levam a outra relação com o nossos ídolos escritores. O meu, por exemplo, escreve daqui do Recife. De forma velada, ele preenche sua intimidade como se fosse uma redação de utilidade pública. Forma opiniões com convicções aparentadas com desabafos que permitem essa dicotomia entre admiradores e detestadores de sua obra.

Acontece que, de tanto entender o íntimo do meu escritor favorito, e o fato dele morar na minha cidade também contribui, tenho o privilégio de ocupar os mesmos espaços que ele olhou e escreveu. Mais fascinante ainda é você estar no momento exato em que alguma coisa o inspirou para um novo texto. Ele dá um gole na cerveja, tira o bloquinho, dá uma olhada para o Rio Capibaribe, com aquele olhar profundo mesmo, e começa a anotar de mansinho algum texto. Vai ali deslizando o lápis, franzindo a testa como se estivesse impressionado com aquela ideia que nasceu de repente.

Infelizmente, essa emoção de ser quase um vizinho do escritor favorito tem outra face da moeda. Sem falar na angustiante preocupação de você se transformar em um objeto observado por ele, num surto egocêntrico-narcisístico, existe a tensa condição de você ver seu escritor em apuros.

A cena é ridícula. Seu escritor favorito está embriagado, mas tem que levar uma amiga mais bêbada ainda pra casa. Ele a segura pelo braço, tenta ampará-la diante do rodeio alcóolico, mas ela não se contém. Berra na rua, abraça desastrosamente os amigos, atrasa a volta para casa do meu escritor favorito. Eu sinto que ele está preocupado, nervoso, constrangido e, por consequência, indefeso. Sei porque reconheço na sua reação toda a sua obra virtual, suas crônicas, seus contragostos.

Penso em me levantar, passar um carão na moça inconveniente, mas uma sensação me assalta. Reconheço que essa parcialidade na história pode me custar uma participação indiscreta na próxima crônica do meu escritor favorito.

Tento esquecer a situação voltando ao assunto da minha mesa, mas o meu escritor favorito está em apuros. A moça bêbada e chata aumenta o escândalo. A cidade toda sabe as intenções dela para 2014. O meu Tolstói recifense, colecionador de jornais e revistas, protege com todo carinho sua nova aquisição. Tem uma face triste, inconsolado. Penso em ajuda-lo, mas desisto, de novo.

Ele some. Espero que ele tenha resolvido o problema da moça cheia de álcool. Voltei para a minha cerveja, para os meus amigos. Em silêncio, fingia ouvir atentamente ao novo assunto da mesa, mas, por dentro, estava me recompondo daquela aventura pela qual meu escritor favorito dará risos e esquecerá em dois dias.

Risos que seriam incontroláveis aos meus amigos se eu tentasse explicar a adrenalina que passei naqueles breves, mas profundos e quase violentos cinco minutos. Passei a odiar a moça. Passei a imaginar se o meu escritor seguiria à risca as recomendações para se recompor daquele momento tão comum na boemia do Recife.

Foi um momento triste, como também o é em outros momentos, com outras formas de importunar seu ídolo. Foi da mesma forma quando eu vi Renatinho, o lateral esquerdo do Santra Cruz, quase queimar a boca comendo um croissant além do ponto , fervendo depois do micro-ondas aqui na padaria perto de casa. Seria da mesma forma como eu ficar sabendo que Chico Buarque tá caminhando em Boa Viagem, resolveu sentar na areia e ninguém o serviu aquele balde cheio de Skol gelada. É como aquela professora velhinha do primário, por quem você aprendeu a conservar uma admiração, ser levada pela multidão sem freio da conde da Boa Vista.

O instinto é preservar, cuidar como algo seu. Intimidar os desavisados mostrando que por ali passa alguém importante para a humanidade, como seu Alcides, jardineiro dos bons, cuidadoso da raiz ao fruto, assim como seu Alexandre, porteiro que só conhece adjetivo positivo para impulsionar suas noites. A malícia do fã é policiar os passos de quem admira
Por isso, a minha saída foi escrever. Aprendi que é uma forma de desabafo. Aprendi com meus ídolos da literatura. Ninguém os admira, mas eles merecem, com todas as honras, a importância de todos os títulos oferecidos pelo mundo. Só não merecem a fama descartável, repleta de admiradores também descartáveis. Por isso escrevo para vê se criamos uma justa homenagem aos verdadeiros ídolos desavisados da humanidade.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Amar: um mau costume


Caro leitor, caso você tenha náuseas com coisas sentimentais, melhor deixar este post para outro dia, ou quem sabe nunca mais e, por favor, eu torço por isso, aguarde o próximo texto. Mas é que, entre tantas coisas na vida, o amor também é um costume. Daqueles do pior que existe. Troço que nasceu encangado com o vício. Como não perco um só “retrato” da vida em comum que nós temos por esse mundo, faço questão de comentar. Meu amigo Boneco, vulgarmente chamado pelos pais como Phillipe, diz que eu sou do tipo que capta a menor coisa da conversa e escreve uma imensidão de invenções em cima daquilo. Eu retruquei, dizendo que isso é ficção. Ele insiste que não.

Mas acontece, meu amigo, que há por essas bandas todas quem jure que o mundo ainda é o mesmo. Só nos falta, para quem acredita, a tanguinha verde de Adão e a implicante curiosidade de Eva. Há também quem olhe enviesado e desconfie um pouco de tudo, muito embora a certeza seja um conceito abstrato para as suas conclusões, duvidando das próprias opiniões. Outros atestam com muita ênfase, alinhados num pessimismo original de marca, que o mundo mudou e está uma merda.

O que na verdade guarda ainda uma semelhança de outros tempos é esse tal de amor. Menino cabuloso, cabe em todos os lugares. Parece roupa masculina, servindo em todas as ocasiões – do casamento ao funeral. Quando não existe, no sentido concreto de ser, faz qualquer um buscá-lo em outra pessoa, numa pressa sem freios. No caso do marmanjo atormentado pela solidão, a divina dama – quase uma dama Cartolônica – é o seu alvo. Alguns têm métodos estranhos de amar, testando em beijos, amassos, exatamente num plural confuso, cujos amores não se definem, e se turvam, e se amontoam. Mas amam. Não posso julgar, tentando impor minha forma, maneira e bom costume. Esse verbinho cheio de love nasce de dentro, cá conosco. Realiza-se por nosso convencimento.

Eu sou do time dos amantes tradicionais, como na canção de Roberto Carlos. Sou bem à moda antiga, e bem passado, o camisa 10 dos caras. Chamo de amor, saio pra jantar, escrevo uma cartinha, do tipo que ainda manda flores e que, apesar do velho tênis e da calça desbotada, eu ainda conservo a velha paixão, única e indizível.

Mas há outra face do amor, que é tão marcante quanto qualquer outra: a sua despedida. Lá em São Lourenço da Mata, na época da turma que não perdoa nada, chamavam isso de “dor de cotovelo”. Quando o amor da gente põe um fim na nossa história é quase uma ressaca sem cachaça. Quando se perde um grande amor, você fica mais exigente consigo mesmo. Não se perdoa por ter sido grosso, por ter achado que venceria a discussão mantendo aquele orgulho imbecil. Fica uma nódoa triste na vida.

Pior que a mancha de vinho na cerâmica da casa, que foi aberto para brindar mais um dia de amor e terminou no chão, vítima de um impulso, de um descontrole, uma raiva enxerida. Lá está a prova da tensão do fim do amor, ao lado dos cacos de vidro da taça que os dois compraram num sábado de sol, no Atacado dos Presentes. Era o primeiro item da futura casa.

O cara passeia de cueca dentro de casa, com a cabeça doendo, e repara na sujeira deixada por um já passado torturante. Lembra-se da cor do vestido dela, de quando ela se desfez do salto. Até na hora do banho, o cheiro do sabonete remete a um bom cotidiano. Os passeios de mãos dadas, as conversas repetidas e melosas e os apelidos eternizados. Uma semana depois, quando ela volta para buscar as roupas, meio que acende aquela esperança, como a última brasa de uma fogueira. Ela ainda te chama pelo apelido. Ilusão ferina.

Ela passeia retomando tudo que julga seu. O sorvete da esquina, o jornal que assinaram juntos, os melhores restaurantes mais baratos do Recife, o cinema apertado do Boa Vista, o cd de Chico Buarque e o vinil de Fagner, arranhados de tanto tocar no som do quarto, a camisa do Santa Cruz, o livro do Milan Kundera, o documentário do Silvio Tendler, o desenho imitando o Oscar Niemeyer que um amigo designer fez pra eles. Já são peças do museu íntimo do casal que não existe.

A memória é cortante. Depois do fim, haja amigo e haja cerveja para tentar despistar a lembrança. Cada casal que passa na rua dá uma inveja sacana. Os almoços de domingo nos restaurantes são terríveis para quem passou por um fim de um grande amor. Aparenta-se a uma tortura ou a uma tragédia. Um tsunami asiático.  

O fim de um grande amor é brega. Mais ainda o recomeço de uma vida a sós. A lista do que fazer é extensa: são ensaios na frente do espelho com as melhores frases para puxar assunto com outra mulher; mudança no guarda-roupa, mas essa está condicionada a uma dieta, geralmente seguida de uma adesão ao vegetarianismo (só de segunda a quinta); prometer aos amigos retomar ao futebol da quarta-feira; frequentar lugares badalados, famosos e cheios de mulher que gostam de Jorge e Mateus; e escrever no blog histórias engraçadas, românticas e saudosas.

Mesmo assim, sabendo de cor as receitas dos dois lados desse sentimento bonitinho, a gente ainda insiste. O ranço de um sofrimento por amor arranhando o lado esquerdo do peito do camarada e a única solução pensada pelo sujeito é, simplesmente, encontrar um novo amor. Essa esperança romântica de um grande amor é um baita de um bom mau costume.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Avante, meu tricolor!


Não se acanhe com os arroubos dos adversários. São pompas efêmeras. Sabemos que, no íntimo, somos grandiosos. Olhai teu passado e, de leve, braveja. Quantos caminhos trilhados com glórias. Olha, mais uma vez, e repara na massa lá fora, que chora – de alegria; que tem fé, que veste a camisa, invade o campo, se banha na piscina da sede nas comemorações, que sofre de ansiedade a semana inteira pelo jogo do glorioso.

Olha a moça que se aventura na garupa de uma cinquentinha, sem capacete, e abraçada ao seu rapaz ruma direto ao Arruda. Juntos, verão a alegria de uma massa em êxtase pelo clube. Olha, discretamente, aquele senhor aposentado que cruza a rua do canal com a Beberibe. Radinho ligado, passos nervosos, camisa padrão número 02 do ano de 1997. Ao lado daquele homem, assossegado na aposentadoria, caminham juntas a esperança da vitória, no próximo jogo, e a lembrança de um antigo escrete, como aquele de Givanildo, ou o de Zé do Carmo, que não sai da memória.

Avante, meu tricolor. Não dê ouvidos aos arroubos. Use a memória como orgulho para o futuro. Estenda a bandeira, sacuda a poeira do marasmo e bota esse time em campo. Mostra ao habilidoso, mas inibido Caça-Rato que o time tem poder de fogo. Manda pra escanteio essa tendência fúnebre de submeter o futebol aos melodramas do mercado. Aglomera em torno de si, com muito churrasco, cerveja e frevo, todo empresariado que torce por você. Faça-os desembolsar uma grana. Garanto: do aposentado ao executivo, todos acreditam.

Faz uma força. Não deixe que a turma passe o carnaval em depressão esse ano. Em São Lourenço da Mata, a turma coral tá com uma sede danada. Seu Mizael Freitas dos Anjos, mais conhecido como Bael, só serve a cerveja gelada quando o Santinha tá disposto pra vida. Meu tricolor, avante! Olha esse povo esperando teus passos de retorno. A euforia é única quando vibramos tua vitória.

Cativa a mocinha, o pirraia bom de bola, a coroa do vovô. Quero ver o Arruda lotado. O terror do nordeste atiçando a mundiça, como é  apelidada a torcida coral pelos adversários injustos e sem juízo. Chama esse povo que se bronzeia na geral, que veste as três cores com um orgulho nato, coisa de batismo, genética ou mitologia. Grandiosidade épica, que somente poetas como Capiba e  Samarone Lima podem narrar. Vibra com aqueles gols de classe, que apenas cabem na narração de um Ivan Lima, Adilson Couto ou Jayme Cisneiros. Chama esse povo que faz de um clube um movimento popular, com hino, manifesto e proposta para o mundo. Time que é quase uma obra de Antonio Maria, uma pintura de Cícero Dias. 

A revolução nasce em Pernambuco e tem três cores. Quando o meu tricolor joga, os jornais se deliciam. É notícia pra três dias, com direito a reportagem especial e pôster no caderno de esportes. Os colunistas não encontram outro assunto. Lenivaldo Aragão volta e meia tinha o santinha no título. Marcelo Cavalcante já deve ter notado que o Blog dele fica mais visitado quando tem o santinha como assunto.

Avante, meu tricolor. Repara tua majestade. Teu posto de rei e único time com torcida nesse estado continua intacto. O bicampeonato pernambucano espera uma atualização. O tri é nosso. Larga essa tensão, esse marasmo e vamos deixar a alegria retomar seu posto aqui no Arruda. Avante, meu tricolor. Avante.