Certa vez, Samuel, um garçom
amigo do meu pai, soltou uma frase que achei bastante representativa sobre a
nossa constante necessidade de ser livre. Na verdade, ele nos contou uma linda
e curta história, enquanto nos servia uma deliciosa fava. Discorreu Samuca um
breve causo, que eu poderia batizar de uma “Ode à liberdade”. Dizia nosso
amigo: “Ciro, perceba que o cara pode cuidar, dar carinho, alimentar com o melhor jiló que
existir na terra, mas, assim que perceber uma brecha, o passarinho voa da
gaiola”. A réstia do sol é uma indicação irresistível de que o caminho está
livre.
Mas não somente o sol nos atrai e
nos liberta. Páginas de um grande livro nos transportam por diversos mundos e,
assim que terminamos ou pausamos a leitura, damos um lento gole na água e uma
respiração orgulhosa, como se estivéssemos organizando todas as ideias, as ruas,
os cheiros; como se estivéssemos amenizando brigas, articulando uma
reconciliação entre casais pelo mundo afora, guiados pelos livros. Os
iluministas já carimbavam ao mundo que o esclarecimento é a base para a
perfeição do exercício das capacidades humanas: o pensamento racional, a criatividade,
a educação refinada, o trajeto burguês de bons comportamentos.
Me despertou grande fascínio a
estratégia adotada por um presídio em Santa Catarina, na cidade Joaçaba. O esquema
é o seguinte: foi indicada para cada preso a leitura de um clássico da
literatura, em troca de uma redução do tempo da pena. A primeira sugestão veio
da Rússia. Atividade elaborada pelo projeto Reeducação de Imaginários, os penitenciários
dispostos a reduzir alguns dias no tempo de reclusão terão que ler, em 30 dias,
Crime e Castigo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Autor consagrado da
literatura do século XIX, Dostoiévski, além de Crime e Castigo, levou às
páginas sua experiência atrás das grades, na obra Recordação das casas dos
mortos. Há um identidade entre leitor e autor nessa ocasião.
Não basta apenas ler o livro,
folhear de forma avulsa. O preso terá um prazo para degustar a obra completa.
Após 30 dias de leituras e viagens, o detento colocará uma resenha sobre o
livro sob avaliação de uma Comissão e do Juiz da vara responsável pelo
presídio. A ideia, muito boa por sinal, é recente. Funciona há um mês.
Para quem achou que pouca atração
e utilidade haveria este projeto, já estão inscritos no projeto 23 presos, que
tentarão encurtar o caminho da liberdade através de um atalho chamado leitura,
sobretudo da leitura dos clássicos literários. O cheiro da história passará
entre as celas e atiçará mentes renovadas, ambiciosas pelas ruas, pelo mundo e
pelo contato para tentar aplicar o que absorveu da experiência de Dostoiévski.
Também estão no planejamento
William Shakespeare e Camilo Castelo Branco. A proposta está validada
constitucionalmente. A Lei de Execuções Penais autoriza o detento reduzir a sua
pena com trabalho e estudo. Os livros utilizados no projeto foram financiados
com uma verba oriunda das multas pagas por pessoas que cometeram delitos que
poderiam ser submetidos a fiança.
Aos poucos, munidos de verbos e
ideias, presos rompem as celas, desatam nós da falta de oportunidade, da
exclusão, do crime e se introduzem num mundo mais vivo, colorido, plural e repleto de oportunidades. Uma vida com mais poesia, questionamentos e formas
alternativas e viáveis de contestar a
realidade. É pelas letras que esses cidadãos irão encontrar o caminho de volta
para a liberdade.