O
caso recente envolvendo o cantor Amado Batista foi uma coincidência tão
interessante que me impulsionou a retomar os trabalhos neste blog e a criar um
novo tópico nesse retorno, que será dedicado a comentar livros. A coincidência é que um artista de grande sucesso,
arrebatador de vendas e shows lotados revelar sua experiência com o Regime
Militar, inevitavelmente me remete a obra de Paulo César de Araújo, cujo livro
estou apreciando no momento, já em suas últimas páginas. “Fui torturado e
mereci”, assim disse Amado Batista, um dos maiores porta-vozes da paixão e da
dor do povo brasileiro.
Julgo um momento de inconsistência, um artista soltar uma revelação dessas. Mas, além de não me conformar com alguém que se entende merecedor de torturas, me surpreendeu a repercussão que tomou o caso e um possível espanto ao associar o artista com a repressão: “Amado Batista torturado? Com que motivo? Ele era comunista? As dúvidas e as insinuações são enormes.
Mesmo não sendo músico profissional na época, o perfil de Amado hoje não condiz com o perfil esperado da resistência e isso nos remete ao que outros artistas do grupo da canção romântica vivenciaram nesse período. Paulo César de Araújo nos revela em boa obra que as canções de protesto estiveram muito além da MPB de Chico & Caetano e foram parar no mundo do som cafona, que vendia milhões discos, arrebanhava grandes públicos e nunca foi tão simpático com a crítica.
Julgo um momento de inconsistência, um artista soltar uma revelação dessas. Mas, além de não me conformar com alguém que se entende merecedor de torturas, me surpreendeu a repercussão que tomou o caso e um possível espanto ao associar o artista com a repressão: “Amado Batista torturado? Com que motivo? Ele era comunista? As dúvidas e as insinuações são enormes.
Mesmo não sendo músico profissional na época, o perfil de Amado hoje não condiz com o perfil esperado da resistência e isso nos remete ao que outros artistas do grupo da canção romântica vivenciaram nesse período. Paulo César de Araújo nos revela em boa obra que as canções de protesto estiveram muito além da MPB de Chico & Caetano e foram parar no mundo do som cafona, que vendia milhões discos, arrebanhava grandes públicos e nunca foi tão simpático com a crítica.
Nada
mais do que um incômodo. Foi exatamente isso que moveu Paulo César de Araújo,
natural de Vitória da Conquista, interior da Bahia, a escrever o livro “Eu não sou cachorro,
não”. A infância e adolescência foram construídas
num cenário típico da periferia regional do país nos anos 1970. Sem televisão e
muito ligado ao rádio, o menino Paulo teve sua formação musical guiada, inicialmente, por uma
geração de artistas liderada por clássicos “cafonas”, como Waldick Soriano,
Odair José, Nelson Ned, Paulo Sérgio e Aguinaldo Timóteo, conterrâneos do
autor, cúmplices da experiência de vida e grandes cronistas da trajetória sofrida
de milhares de brasileiros.
Era impossível não perceber
que por trás daqueles sucessos, que embalavam garimpeiros, cortadores de cana,
empregadas domésticas e migrantes, não houvesse algo a se descobrir. Assim que ingressou na Universidade para
cursar História, na Universidade Federal Fluminense, Paulo César
percebeu que não havia uma linha escrita a respeito desses artistas. Tão
famosos e queridos pelo interior do país,
não passavam de anônimos para a historiografia e um absurdo estético para a
academia, uma vácuo nas ciências sociais e na história. “Quando ingressei na
faculdade e me interessei pela história da música brasileira, constatei que
aqueles cantores não estavam representados na historiografia. Eu me formei em
História na UFF e Jornalismo na PUC. As pessoas falavam sobre bossa nova,
tropicalismo e samba de raiz, mas nada sobre os bregas. É como se eles não
tivessem existido.”, declarou o escritor
em entrevista a Revista Brasileira de História da Biblioteca Nacional, em
Outubro de 2008.
Mais
incomodado ainda Paulo ficou quando descobriu as aventuras e o tom transgressor
desses artistas durante o Regime Militar e o incompreensível silencia sobre
essa história. Destacando-se na Saara das canções de protestos, um elenco extenso
liderado por Odair José e Aguinaldo Timóteo sentiu o peso, a intolerância e a cegueira
da censura. Para os ouvintes e pesquisadores, esse universo era propriedade das
estrelas da MPB, talentos incontestáveis, mas que tinham suas obras
desconectadas das angústias populares e, muitas vezes, escreviam em nome de
movimentos e grupos de cultura. Daí a constante recorrência, na memória musical brasileira, a reverência a Chico Buarque e Gilberto Gil,
Caetano Veloso e Milton Nascimento, como consagrados artistas da resistência.
Argutos
compositores que ficaram famosos pelas letras repletas de frestas, recurso que
os compositores utilizavam para driblar a censura, e donos de uma excelente
técnica e precisão no combate político, esses rapazes não foram os únicos que compartilharam
do sofrimento da censura. Outros artistas, que passam pelo esquecimento por causa do
estilo popular e não erudito de suas produções, também estiveram na posição de
censurados.
No
cuidadoso e minucioso livro “Eu não sou cachorro, não”, Paulo César de Araújo
retira do esquecimento figuras históricas do imaginário popular brasileiro –
sobretudo do interior - reinterpreta o
conceito de música cafona e música de protesto e lança luz sobre uma questão
muito curiosa: por que uma elite acadêmica, que forma o hall dos críticos,
excluiu da História da Cultura Brasileira o brega ou o cafona? Para o
pesquisador, a resposta está na formação social desses críticos, que ocupam um
espaço diverso do universo social que formou o grupo dos cafonas.
A
revelação dessa outra face do brega vem com rigor. Tomando como referência a
vigência do Ato Institucional N° 5, que foi um aparelho jurídico utilizado pelo
regime para aumentar a repressão aos movimentos de resistência e oposição ao
Estado de exceção Militar, o livro aborda o desafio de artistas populares ao
lidar com a essência de dupla repressão: a política, que direcionava sua força
contra ideias e ações de plano ideológico, e a moral, que interceptava qualquer
desvio de comportamento diante daquele padrão estabelecido pelos militares.
O
exercício do livro é contextualizar a repressão. A cada canção lembrada, que, à
medida que os episódios se sucedem, aparece com profunda nostalgia para alguns,
revela um pouco do clima dos porões e dos escritórios, das ruas, das casas e
das universidades naquele período. Paulo César mostra como o brega tratou, sem
constrangimentos, de anticoncepcionais, relações homoafetivas, prostituição,
desigualdade social e, claro, do amor. Canções
como “Tortura de Amor”, de Waldick Soriano, e “Pare de tomar a pílula”, cantada
por Odair José, que foram interpretadas como inofensivas e cafonas pelos
críticos, naquele momento foram podadas,
adulteradas e, para não perder os costumes dos fardados, absolutamente
proibidas. O motivo? Apensas um: censurar manifestações artísticas que
incentivem a desordem e que firam a moral e os bons costumes.
O
escritor não poupou esforços para interpretar e apresentar a dimensão exata
para o leitor do ambiente repressivo,
que era, de fato, inflexível, arbitrário e absolutamente sem critério.
Censurava, muitas vezes, pelo simples ato de censurar e exercer o poder. Sem a
exaustão acadêmica, muito menos a superficialidade comum aos formatos
jornalísticos, Paulo esclarece quais são as ideias que circundam a censura, identifica
historicamente seus atores, apresenta – pela primeira vez na historiografia
brasileira – as vítimas desse sistema repressivo e descreve, numa narrativa
crescente e quase cinematográfica, os casos e as visitas dos artistas ao
DOI-CODI.
A
obra torna-se clara a quem se interessa pelo assunto pelo seu tom inédito e
pela capacidade de misturar, num mesmo espaço, a atração das anedotas e a
substância dos embasamentos teóricos, alguns oriundos da história, outros da
comunicação social. O método foi bem rigoroso. Em sintonia com uma investigação
detalhada nos arquivos espalhados pelo país, Paulo César fuçou vários sebos em
busca dos discos com versões originais de canções censuradas e entrevistou os
próprios personagens do livro, que recordam, conforme sopra o vento da memória,
os tempos do AI-5, o início da carreira, o convívio com a censura, as intenções
das letras e, claro, o reconhecimento do sucesso.
“Eu
não sou cachorro, não” foi publicado em 2002, mas foi fruto de quase doze anos
de muita investigação. A obsessão daquele homem que foi engraxate no interior
baiano era conhecer a fundo a história de seu ídolo, considerado um rei da
música popular por muitos brasileiros – Roberto Carlos. Essa iniciativa o levou
a essa pergunta sobre os “excluídos” da música brasileira, que acabou se
tornando o passo essencial para o seu trabalho de doutorado. Em paralelo aos
estudos acadêmicos, o escritor continuava sua batalha em busca do seu
biografado. Driblando as dificuldades
financeiras e de comunicação dos anos 1990, ele conseguiu chegar até artistas inalcançáveis,
como João Gilberto e Tom Jobim, para tratar
da estrela da Jovem Guarda e adquiri novas versões sobre a história de Roberto.
O
faro para a novidade é uma característica que formou o Jornalista Paulo César
de Araújo, e a formação em História lhe deu um chão importante para entender a
dimensão de suas dúvidas e, na missão de dirimi-las, esticá-las historicamente,
para evitar conclusões anacrônicas, impulsivas e rasas. A música é o grande
ensejo de sua obra. A biografia de Roberto Carlos é uma prova disso. A ânsia de
conhecer um ídolo e a preocupação de situá-lo numa estética, numa ambiente
político e entende-lo como fruto do seu tempo permaneceram unidas no trabalho
do jornalista e historiador. O livro, com pouco tempo de publicado, em 2006, acabou
sendo censurado pelo próprio biografado, numa batalha jurídica que vem até
hoje.
Em
tramitação no Congresso Nacional, um projeto de Lei que dispõe sobre a liberação
de biografias não autorizadas retoma a esperança
de Paulo César Araújo de mostrar para todo o Brasil quem é Roberto Carlos,
afinal. Recentemente, em entrevista a Carta Capital, o biógrafo abriu mais uma
vez a polêmica ao afirmar que pretende relançar a obra que traz, em detalhes, a
história de vida do compositor de sucessos como Detalhes e Côncavo e Convexo. Enquanto não encontra uma editora
corajosa para colocar de volta nas livrarias a obra censurada, Paulo César de
Araújo pensa em lançar um ensaio contando os bastidores da investigação da vida
de Roberto Carlos.
Seu
trabalho volta aos debates com a polêmica declaração de Amado Batista a respeito
de suas experiências com a tortura. O clássico “Eu não sou cachorro, não” revela
muitas faces da repressão, que girou em torno da perseguição política, mas
também efetivou-se por outras intenções, entre elas a censura moral. Apesar de
o cantor de sucessos como “Secretária” admitir que mereceu o tratamento
violento do Regime Militar em virtude de sua contribuição com membros da
esquerda, a obra de Paulo César também revela como uma parte da sociedade não
compreendia o movimento do golpe de 1964 e seus posteriores engrossamentos. Em
síntese, uma obra ilustrativa, bastante reflexiva sobre um determinado período
e que repensa, sobretudo, as decisões de nossa historiografia, que determinam,
no seu alcance, o nosso passado e o nosso futuro.