quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Para onde ela foi?

Antigamente Ele tinha medo dos sentimentos porque os que sentia eram instantâneos demais. Eles chegavam, os abraçavam com saudade e no outro dia já partia, em silêncio. Muitas vezes Ele nem via a hora da partida. Em outras, o ruído do flash da mala anunciava a despedida, e Ele não entendia a lógica da partida. Quando dava conta, a porta já estava batida e a presença mais longe do que se podia imaginar.

A partir de então resolveu deixar de lado essas bobagens de acreditar no impossível e levar a vida mais a sério. Não deu vacilo em acreditar em qualquer verbo, muito menos mal conjugado. Segredava sua vida apenas ao copo de cerveja. Refugiava-se em temas banais, generalidades, para que não dar brecha às intimidades tão forçadas, porque, quando criadas, tão imediatamente partem logo assim que chegam.

Na livraria, parou em frente à estante de Filosofia e abriu um livro do Kant. Aprofundou leitura atenta, achava que seria o livro que iria levar. Folheou umas cinco páginas e sentou-se no corredor para continuar lendo. As idéias o seduziam. De repente, levantou-se com o ar de quem aprovou o que estava em mãos. Passou um olhar na prateleira, uma ou duas capas o atraíram, mas tinha certeza daquele livro e não iria deixá-lo na mão. Ele flutuava nos vários sentidos de sua mente.

Ele sentou no café da livraria, fez seu pedido e começou a imaginar novamente a sua vida. Até que uma moça jovem, aparentando seus vinte anos, sentou-se à mesa à frente carregando vários livros. Achou que era para presente. A moça abriu de um por um e, em cada primeira página, anotava algo que Ele imaginava ser a dedicatória para alguém. Ele Começou a olhar indiscretamente, sem segredos. Ele queria que ela percebesse que estava a observando.

Em poucos segundos ela levantou um pouco a sobrancelha e jogou seus olhos na sua direção, como se percebesse ou sentisse o seu olhar lhe tocando. Ao tentar disfarçar, a convidou para sentar na sua mesa. O seu café chegou nesse instante e ofereceu a moça, que aceitou educadamente sentando à sua mesa.

Inesperadamente, sobrevoou sobre a conversa deles vários nomes estranhos que o mundo considera clássico. Minto. Ela citava mais do que Ele, que se reduzia em algumas passagens de sua vida, lembranças vagas dos tempos de Jornalista. Ela era estilista e desenhista, e o fitava como quem estivesse decalcando na página da lembrança, com o cérebro catalogando cada traço d rost dele

A recíproca era a mesma. Ele se sentia nervoso com o tanto de citação que ela fazia e a facilidade com que trafegava de ciência para ciência, da filosofia à Química. Seu peito em disparada desacreditava no que via, mas se encantava com aquela realidade tão rara e, ao mesmo tempo, inventada. Já era um sinal de que Ele se entregava a novos sentimentos, a novas invenções. Ao perceber isso, já era tarde e Ele não podia reescrever uma nova estória. Ela já assinava o bater da porta no bilhete de pagamento do cartão. O barulho das malas arranhando as rodinhas pela sala foi o “Obrigado e volte sempre” do garçom”. Ele se sentiu um inoperante. Suas forças se perderam na emoção.

Diante da persiana, com o Kant na cabeceira, acendeu seu cigarro imaginando seus passos, processando o tom da voz da moça na memória. Já era Noite e quase 24h do encontro. Para onde ela foi? Sentía-se preso ao sentir saudade daquilo que não viu, não conheceu e não aconteceu. Imaginou que ela foi para Ele como as águas que escorrem por entre as mãos: tão real e tão inacessível. Para onde ela foi? Repousa, imaginação! O que restou apenas foi o gosto do trago, tão amargo quanto sentir saudade daquilo que é invisível.

Um comentário:

  1. "O que restou apenas foi o gosto do trago, tão amargo quanto sentir saudade daquilo que é invisível."
    Essa foi lá no fundo, velho. Sou fã dessa frase.
    Muito bom.

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