quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Os sonhos entre atos


Ainda criança, quando morava em São Lourenço da Mata, tinha uns atos estranhos de olhar sem rumo e acreditar no que eu não estava vendo. Era quase como um afago aos devaneios, um carinho aos desejos. Digo isso, porque sempre tive uma grande lista de sonhos e eternas vontades. Não me considero por isso um problemático na conclusão desses projetos, até porque vivo reatualizando, revendo, adiando e descartando conforme o sopro do tempo. Mas era um menino constantemente atento ao futuro. E me reconfortava das limitações do presente profetizando com aquela velha máxima da esperança: “um dia eu consigo”.

Até parece uma prática de ambiciosos, um costume daqueles banqueiros milionários arriscando toda sua grana em apostas e desejando dominar todos os espaços. Mas não é esse tipo de ambição venenosa, inclusive porque não tenho essas ganas todas. Me contento sempre com o simples, o mais prático e reconfortante que possa ser.

Falo isso porque todo mês de setembro me bate uma nostalgia de certas coisas. Mentira. Todo dia eu sou nostálgico, não é uma exclusividade do coitado do setembro. Gosto do que é velho, aprecio a sensação de conservar. Um dia desses fiz uma faxina no meu quarto e vi que, realmente, tenho essa tendência de guardar muita inutilidade, muito papel. Acontece que eu tenho notado que não contenho esse meu lado “conservador”, no sentido de guardar, preservar e ter o deleite, de um dia, lembrar com orgulho.

Em uma das minhas gavetas, por exemplo, eu guardo uma bolsinha simples, transparente e com a marca “Claro”, repleta de cartas e bilhetes. Foram textos de amigos, escritos num momento de atenção. Nessa bolsa, encontrei cartas de Marília, uma querida amiga que me escreveu em 2008 sobre sonhos, sobre a vida, o mundo, a arte de escrever e, no final, disse que encerrava ao som de Tom Jobim. Que doçura. No exato momento, me transportei para quatro anos atrás, me sentei ao lado dela que, como escreveu, estava ás margens do Capibaribe. Foi tanta emoção que até  o coração pediu abrigo por causa do vento frio que corria vindo do rio.

Achei também, em outro lugar, duas bandeiras do MEPR, movimento estudantil do qual que fazia parte. Tempos de luta, do fervilhar revolucionário e da prática combativa por um mundo melhor e mais justo. Lembrei dos amigos e amigas que me cercavam nessa época. E você percebe que a saudade, entre outras coisas, é um delineador de personalidade.

Ao mesmo tempo em que lembro,  também projeto no futuro esse espirito conservador. O que guardo é feito na esperança de encontrar intacto aquele mesmo momento feliz no futuro, e os planejamentos também são cercados por essa ansiedade. Em minha lista atual repousam algumas vontades que já foram várias vezes adiadas: a primeira delas, e meus amigos Tarcísio e Terêncio irão me perdoar, é montar um bloco. Não sei de onde vem isso, mas sempre fui fascinado pela ideia de ter um bloco só meu, onde eu escolhesse o nome, juntasse todos os amigos, improvisasse uma linda camiseta, articulasse um instigante hino e saísse pelas ruas do Recife e Olinda, somando amigos empolgados na folia. Deve ser uma satisfação ímpar o orgulho de ser dono ou criador de um bloco. Imagino o povo dos Vassourinhas, do Galo, do Amantes de Glória, dos Barba,  de tantas outras troças que se espalham nas ladeiras e nas ruas, contagiando o povo com alegria, irreverência, amizade e paz.

Outro sonho é conhecer Cuba. Tenho um fascínio por aquele lugar. Uma ilha extremamente política para o mundo. Meus anseios na pequena Cuba é conhecer o seu lado B, a não sensação política, os outros sonhos, as suas ruas, o seu povo, conhecer o Frontal de lá, do Antigo de lá, etc; Ser um turista com vontade de conhecer a intimidade deles. Imagino o charme que é ouvir Buena Vista em Havana, tomando um Run cubano, com algumas baforadas dos charutos, lendo os extensos jornais divulgadores dos Castros, dá uma olhadinha de leve nas saias curtas das garotas e sentir o verão e sol daquela Ilha. Na verdade, respirar um pouco aquela leve sensação de ser diferente. 

Escrever um livro é o sonho mais pungente. É o tipo de desejo que se intromete em todos os outros planos. Não há um passo que não seja dado a partir do velho “vamos publicar um livro”. O blog tem me consolado durante um bom tempo, desde as minhas humildes e singelas contribuições ao excelente Jornal  Cultural, do Tarcísio Camelo. As redes sociais suavizam um pouco essa minha pressa de colocar os carros na frente dos verbos. Sou muito insistente nisso de escrever um livro, muito embora me falte assunto, prumo e manha.

Para o sonho, esse sim, parece que nasci para ele. Me sinto o mais preparado do mundo para pensa-lo. Se dependesse dele, já estava voltando pra casa depois de uma baita volta ao mundo. Mas,  como cantava Chico, sonhos sonhos são. Realizá-los já são outros sonhos. 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

A pátria aposentou as chuteiras.


Nunca, mas eu digo com toda convicção que nunca, o Brasileiro deixará de amar o futebol. É sua paixão ardente, que ferve, derrete a epiderme e desata todos os fios de racionalidade que compõem o juízo. O futebol é o amante do brasileiro.

Não foi à toa que o mestre das palavras, Nelson Rodrigues, em uma de suas crônicas esportivas, atestava: a canarinho em campo é a pátria de chuteiras, dada a dimensão do espetáculo que era um jogo brasileiro em copa do mundo, amistoso ou demais competições internacionais envolvendo seleções.

Mas depois de ontem, comovido, o Brasileiro aposentou suas chuteiras. Morgou. Não há graça em vestir a camisa amarela, reunir os amigos em torno da Tv e tomar algumas “geladas” durante a partida, ou ir ao estádio, enrolado nas bandeiras, embriagado de euforia e cantar, nas arquibancadas, a todo peito: “Eu sou brasileiro”. Não. Não há mais isso.

É um desapego que corre o país. Em São Paulo, a desilusão ficou evidente nas vaias, nas ensurdecedoras agressões verbais.  Em Recife, mesmo com o largo resultado de 8x0, não entusiasmou. O adversário não deixou que a goleada se transformasse num resultado exultante e fez com que piadas e indiferenças corressem as ruas do Recife. Foi-se embora a tradição pernambucana de alavancar a seleção brasileira, em absoluto.

Já faz um tempo que o tradicional apaixonado por futebol mandou para escanteio o time de sua nação. É muita concorrência para as firulas ineficientes do Neymar, a insuficiente tendência à camisa 10 de Lucas, a ausência de um zagueiro destemido em rifar e travar bolas ali atrás e de um lateral operário, indo e vindo, do ataque à defesa. 

Concorre com eles a incansável publicidade, que exige deles mais exibição do que competência em campo, que leiloa suas habilidades, controlando seus passos e censurando as cores de um espetáculo que, por natureza, nunca foi adepto do controle das emoções.

Dessa forma, lamenta o torcedor o escrete definhar, amargurar a ausência do talento e da emoção, da vibração e da tensão inebriante que é uma partida de futebol. Lamenta o torcedor e, mesmo desacreditado, vai dormir antes de o jogo começar, mas aciona seu radinho de pilha embaixo do travesseiro e confere de longe, como um pai magoado observa um filho rebelde.

E como quem lava as mãos pela desobediência constante, na solidão da tristeza e na dor ácida da separação, estende, pelos cadarços, as suas chuteiras. Aposenta-se das arquibancadas dos sonhos. 

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Quando a saudade aperta.



Foi durante minha pedalada matinal que a notícia me chegou. Um jovem senhor durante sua crônica diária, enquanto varria a garagem de casa, proseava com o vizinho. Eu, como de costume, não pude passar desocupado durante minha pausa para reabastecer as energias e liguei os meus ouvidos:

"Marrapaz, hoje fez quatro anos da morte daquele cabra que cantava Eu não sou cachorro, não...É...Waldick Soriano", alertou o cronista. 

"É, rapaz. Ele faz falta mesmo". respondeu vizinho. 

"E como!", rebateu o puxador de conversa. 

No fundo, todo brasileiro adora chorar um amor perdido. Parece que se coça a semana inteira para que, na sexta-feira, tenha a possibilidade de  chamar um amigo e tomar uma cachaça lamentando a mulher ou o homem que partiu. O assunto começa como uma tese psicanalítica, com citações ao mestre Freud, e termina com um sonoro "aquela cachorra", uma virada de um gole só da cachaça e o pedido caloroso por Waldick Soriano.

As canções desse baiano surgem como hino à noite caberística. Toca nas melhores casas noturnas, embalando corações apaixonados. Dono de um charme peculiar, Waldick saiu de Catité, sertão da Bahia, buscando a fama e o sucesso na música ou no cinema. Inspirado em Durango Kid, acatou o chapéu estilo cowmboy, famoso nos filmes de faroeste, em seguida o velho paletó da malandragem e o arrebatador óculos escuros. 

Como o maior cantor romântico brasileiro, intérprete de canções viscerais, inevitavelmente Waldick amou muitas mulheres, inclusive algumas delas ao mesmo tempo. Dividia-se entre elas por não saber dizer um não, abandonar uma paixão, correr o sério risco da irremediável solidão. 

Nas letras, a dura crueldade do amor, da saudade e da traição, elementos indispensáveis na vida de todo brasileiro. Waldick é o tipo de música que um velho de 60 anos ou um menino de 15 ajoelham-se, pertinho da parede, escorando o quengo, e cantam aos berros, com a mão no coração. É música que se lamenta, expele a dor, que faz o ser humano abraçar o amigo e erguer  as mãos adorando o amor. 

Antes de morrer, em 2008, o músico vinha lutando contra um câncer, descoberto em 2006. Mesmo em recuperação, Waldick cantou e emocionou plateias, em especial um show emblemático em Fortaleza, chamado Waldick Soriano - Sempre no meu coração, dirigido pela atriz Patrícia Pilar e em seguida transformado num belo Dvd. Esta belíssima obra, inclusive, quando nosso infalível bar de Margarida funcionava, ao redor da UFPE, não demorava muito a tocar e a estudantada toda se entregava ao brega romântico. 

Como toda manhã pra mim é surpreendente, me veio essa notícia comovente. Senti falta de algum disco do Waldick, para continuar a pedalada curtindo um som para homenageá-lo também, assim como fez os dois senhores. Mas não tem problema. Hoje é terça-feira e com certeza haverá alguém na Mamede Simões, no Bar Central, no Cais de Santa Rita, em Olinda,no ônibus, na bicicleta, no táxi, no Rádio,  nos Ele e Ela da vida colocando Waldick Soriano pra cantar Quem és tu, A dama de vermelho, Torturas de amor, Eu não sou cachorro, não, entre tantas outras,  e chorar abertamente a dor de quando a saudade aperta. 

sábado, 1 de setembro de 2012

Uma história de afeto e aventura com os livros.

Corre em segredo de Estado a inauguração de uma biblioteca comunitária na Vila Santa Luzia, aqui na Torre. À frente da iniciativa estão os meus amigos Edu Castro, poeta dos maiores, e Matheus Pinheiro, o menino que desenha o mundo. Sábado passado levei minha primeira contribuição. Juntei numa sacola Histórias do Recife mal assombrado, adaptações infanto-juvenis de Machado de Assis (Dom Casmurro) e Raul Pompéia (O Ateneu) feitas por Ivan Jaf, as Flores para Cecília do pernambucano Paulo Caldas,  com uma edição rara de Ásperos Tempos, primeiro volume da trilogia Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado.Esta obra foi uma encomenda do Partido Comunista Brasileiro e é uma espécie de lado B do escritor baiano. Mostra a rotina de um militante comunista brasileiro sob os auspícios do Estado Novo varguista. Uma narrativa envolvente, que mescla tons de aventura com densidade ideológica no Brasil dos anos 1930.

Entre uma cerveja e outra, imaginava - em silêncio - quantos mundos seriam abertos a partir daquelas leituras. Edu, enquanto ordenava os novos livros, comentava de suas andanças pela Prefeitura do Recife, a articulação com a Associação Comunitária da Vila e eu, observando o olho cheio de brilho daquele poeta, também me encantava. Fiquei produzindo sonhos naquele momento, vendo as crianças da Torre em rodinha, com livros na mão, sorrindo, desenhando, pensando, mirabolando, traçando travessuras. 

O orgulho não se contém nessas horas. Amante de livros e um consumidor desmedido de livrarias, tenho muitas ideias para bibliotecas. Penso nas estantes, na decoração, nas atividades, nas rodas de leitura, oficinas de palavras, brincadeiras... Penso em um espaço constantemente vivo. 

A ideia da biblioteca me comove bastante porque faz pouco tempo que eu me despertei para a literatura. Quando mais novo, não gostava dos livros. Preferia a rua, jogar bola, estar com os amigos, solto. Acreditava ser uma chatice, aquele mundo de leituras. Meus pais viviam incomodados com meus erros de português e sutil incapacidade de interpretação. Vivia em outros mundos, desapercebido das ideias. 

Foi aí que me presentearam o livro "O Menino sem imaginação", de Carlos Eduardo Novaes. Confesso que não li, mas fiquei incomodado com o sugestivo título diante da minha situação. Senti que havia um complô contra as minhas inércias. Meus pais, de uma forma discreta, disseram: você é um garoto que não pensa. Precisa ler! Foi um puta choque. 

Lembro que ainda debulhei algumas páginas, mas não deu. Não li o livro. Não havia prazer. Era mais uma pressão do que uma sugestão. Me deixavam ainda mais preocupado as comparações com meus amigos. 

"A filha de fulano já está no terceiro livro do Harry Potter". 

Sorrateiramente, naquele tom de conversa de juízo, eu soltava um leve  "E daí?". Preferia debater a escalação do Santa Cruz, me dedicar a melhorar minhas habilidades no futebol para não passar vexame nas peladas, ou então pedalar nas intermináveis ladeiras do Parque Capibaribe. Ficava dando um pinta de indiferente àquelas críticas, mas hoje relembro que, no fundo, havia um certo desfalque, um lado do meu cocuruto alertava da necessidade da leitura, ainda mais pelas recorrentes notas vermelhas no boletim. 

Depois de uma longa conversa com meu pai, resolvi começar a ler. Seguindo uma dica dele, coloquei uma folha de papel ofício do lado para identificar e anotar palavras que eu não sabia o significado para achar depois no dicionário. O livro foi a biografia de Pedro Simon. Em menos de 05 páginas e quase uma hora de leitura, já tinha preenchido uma  folha quase toda de palavras indecifráveis para mim. Passei a achar o Pedro Simon, senador da república oriundo dos pampas,uma figura enigmática. Não foi dessa vez. 

Mas sempre tem um livro que desata o nó e nos embala nas ladeiras da leitura. O meu foi a auto-biografia de Samuel Wainer ( Minha Razão de Viver - o título do livro); depois veio Machado de Assis, Jorge Amado, Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez, José Saramago, Chico Buarque, Euclides da Cunha e meu fascínio por Canudos. Depois, já no meio da ladeira, entrei na faculdade e fui diagnosticado com uma compulsão por livros. Mas não consegui conter a entrada de Nietszche, Walter Benjamin, Robert Darton, Eric Hobsbawm, Eduardo Galeano, George Duby e tantas outras figuras. 

Confesso que perdi o freio. Leio vários livros ao mesmo tempo e em vários lugares: tem o livro da mesinha do "escritório", o livro do banheiro, o livro que folheio antes do sono, o da mesa da sala, o do ônibus. Nunca paro de ler. E assim, junto a outros amigos queridos, como Edu e Matheus, espero contaminar novos leitores, futuros escritores da nação. Jogar a sementinha do verbo e colher uma grande vida que brotará em segundos. 

Vou indo devagar por aqui, com o meu Guerra e Paz embaixo do braço. Estava relendo o Os Sertões, mas depois de uma conversa com uma grande amiga ontem, deu vontade de dar uma passada nas ruas da Rússia e conversar um pouco com Tolstói, rir dos seus salões, compreender a imensidão do seu tempo, sentir a importância de Bonaparte no contexto diplomático das primeiras décadas do século XIX. Sentir o quanto a Guerra e a Paz sacodem a humanidade. 

Nada melhor do que os livros para promover uma viagem de Canudos, no sertão da Bahia, em 1894, para a Rússia, em São Petersburgo, em 1805.

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