sábado, 11 de julho de 2009

Na onda da vida.

Edgar livrava-se da graxa que tingia sua mão. Usava um pedaço de pano, todo desalinhado, provavelmente de origem antiga das roupas que não cabem mais naquele pobre homem. Não seria raro encontrar naquele molambo uma propaganda, uma marca de produtos cosméticos ou alguma fotografia de um antigo político. Talvez esse último seja difícil, pela época em que estamos.

Edgar apontava os olhos ao horizonte através de uma grade que cercava sua oficina. Os clientes haviam partido, já era hora de almoço, e só restavam alguns ruídos de Ciro, o pequeno enteado que o ajudava no serviço. Ainda relutando por uma pinta preta entre o indicador e o dedo central, Edgar anunciava a Ciro que dali a pouco estariam os dois na rua, para resolver umas pendengas da família. E ainda com o olhar perdido, Edgar se desfazia do paninho, olhava-se no espelho e chamou Ciro para seguirem.

Ele desfazia o mito sobre os mecânicos. Edgar além de muito limpo, era organizado. Todas as ferramentas, desde os alicates às chaves mais calibradas e específicas, recebiam uma ordem numérica e ficavam guardadas em gavetas encontradas numa mesa central da Oficina. Casado com uma viúva de um antigo motorista da Usina, Edgar tinha pouca sensibilidade paterna com os novos filhos, mas sabia da responsabilidade de educá-los para o mundo que os espera, principalmente no que toca a integridade e o respeito aos outros.

A moça com quem Edgar casou tinha três filhos do primeiro casamento. Os três ainda muito novos para angariar obrigações, mas nada que detivesse a projeção de vida daquele mecânico, que pôs todos os meninos para trabalhar na Oficina, em pequenas atividades, muitas vezes em quase nada, entretanto, já proporcionando uma imagem da vida real que Edgar tinha em mente.

Ao passar pela rua, Edgar cumprimentava os vizinhos, galanteava algumas senhoras e se pormenorizava com Ciro, com algum zelo, sobre a vida íntima de alguns senhores que andavam na ilegalidade familiar. Quando os dois chegaram a principal avenida da cidade, encontraram um frenesi pelas ruas. A notícia, feito bomba, caiu na boca do povo de que a Barragem havia estourado, depois de incansáveis cinco dias de chuva. Os olhos de Edgar encheram-se de preocupação. Ciro o olhou atentamente, apertando-lhe as mãos, como se dissesse “me proteja e a todos lá em casa”. Edgar decidiu voltar.

Na rua que beirava o Rio, equilibrando-se pela linha do trem, os dois observam a força com que água descia o caminho tradicional do Rio Capibaribe. Mulheres com as saias dobradas na altura do joelho reclamavam sua desgraça, clamando por piedade de seu Deus. Alguns homens arriscavam-se a segurar suas riquezas que se escapuliam nas pequenas trombas d’água que lambiam as ruas.

A mãe de Ciro estava grávida de um menino, filho de Edgar, o primeiro do casal. Os olhos da moça lacrimejavam de tanta angústia sobre aquilo. O mais novo do trio do primeiro casamento, corria para cima e para baixo na rua de sua casa, preocupado com a notícia. O João, o mais velho, enquanto jogava bola num campo de Várzea, ouviu comentários da platéia que a Barragem tinha rompido e o perigo era eminente. O atacante do Colibri, clube da rua dos meninos, ao saber de tal notícia, foi em busca de marcar o seu melhor gol: salvar sua família. Ao cruzar toda aquela imensidão de cana e lama, João desvencilhava-se das armadilhas como se livrava dos zagueiros. O garoto ia fumegante. Ao chegar à rua de casa, observou sua mãe, com a mão no bucho, preocupada com a situação. “João, menino, onde tu tava? Vai lá pra dentro, agora menino”.

Em Recife, na redação do Diário de Pernambuco, a notícia chegou com o alarde. Na chefia da redação estava um senhor de bigode chamado Severino Malta. O estagiário de fotografia, Melo Andrade, que voltava de uma matéria especial na Zona da Mata, fotografou o limite que o Capibaribe atingira, confirmando a informação que haviam passado para a redação: a barragem rompeu.

- Severino, é urgente. Muita gente pode morrer se não tomarmos uma posição urgentemente. Há indícios de que a Barragem rompeu, em Limoeiro, muita gente pode morrer alagada e água vai chegar a Recife em pouco pelo Rio Capibaribe – disse o estagiário.

Severino, sentando em sua cadeira, olhou atentamente para Melo Andrade e disse “Vamos cobrir e avisa a Defesa Civil”.

O telefone da Rádio Clube de Pernambuco tocava. O operador de áudio atendia e ouvida os testemunhos. "Tem muita água no Rio, vamos morrer afogados". Ele passou a informação para o produtor de Jornalismo que, imediatamente, mandou uma equipe para o local e ficou noticiando detalhes durante a programação musical.

A noite chegava, Edgar e familia se resguardavam em casa, uma vez que não havia outro lugar para ir, senão ficar na cidade. A casa de Roberto, parente mais próximo, também corria o mesmo risco, já que fica à beira do rio. Depois de jantar em um silência preocupante, todos dispersaram pela casa. A esposa de Edgar foi lavar os pratos, com os olhos cheio de lágrimas, enquanto João descansava a janta encostado na posta da cozinha. Edgar foi até a porta da frente, onde observava a chuva que caía, a água que escorria pela ladeira e agrande poça que foi armada no final da rua.

Ciro foi o único que ligou o rádio, um motobrasil antigo. Ligou na Rádio Clube, ou pelo menos tentou, e ficou relutando com os pitocos do aparelho para tentar entender o que o radialista tentava dizer. Na verdade, tocava uma música de Nelson Gonçalves, cantor predileto de Edgar, que pediu para deixaram tocar. De repente, entra uma voz muito empostada que traz notícias sobre as chuvas, a primeira da noite.

"Atenção, senhoras e senhores. A chuva dá um trégua, mas a suspeita de que a barragem rompeu é falsa. Mas, segundo informações da Defesa Civil, é necessário manter o alerte porque, se a chuva continuar, ela pode romper."

Todos ficaram aliviados e preocupados ao mesmo tempo. A verdade é que, olhando pro céu, dava para dormir tranquilo, só que na torcida para que continuasse sem chover.


*A história continua.


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