sábado, 28 de julho de 2012

Bilhete guardanapo.

Agradeço sempre a quem devo e posso agradecer o brilhante jornal que me emprega; que oferece suas páginas para depositar minhas letras. Recebo um bom salário e, como não sou de muitos consumos, economizo o bastante para viajar. 

Tinha o sonho de não só conhecer outros lugares, mas como cobrir, livremente, a vida que há entre os mundos, seu cotidiano, seu despertar, seu povo com suas manias diárias. Também queria narrar a vida que deve existir entre as guerras. Não, calma. Não sou o típico jornalista bélico que não se contém quando ouve estourar um tiro. Gosto de sentir, como já disse, a vida que há entre os tiros. Ano passado, pude fazer isso. 

Foi numa sexta-feira, dia o4 de novembro de 2010. Recebi uma carta do diretor de redação do meu jornal me perguntando o que eu achava do mundo árabe. Falei que achava fantástico, ainda encoberto por uma nuvem densa de preconceitos, limitações, omissões e até falta de comunicação. Falei que, apesar de curioso, não me sentia apto para narrar um mundo que não me havia aparecido. 

Não adiantou minha modéstia. O diretor escreveu aquela carta muito mais por protocolo, porque a decisão já estava tomada: em breve, eu seria o segundo repórter, na história do jornal, a escrever de terras árabes para o Brasil. A intenção do diretor era, simplesmente,que eu exercitasse meu senso de observação e contasse as histórias que brotassem todos os dias. Arrumei as malas numa ansiedade. Já de casa, passando pelos aeroportos, o hotel, o táxi, cada espaço que eu passava tornava-se uma cenário em potencial para minha primeira reportagem, Faltava-me apenas o personagem. 

Foi aí que encontrei o bilhete escrito no guardanapo. Ele foi meu primeiro e meu segundo personagem nas duas primeiras matérias que consegui emplacar no Jornal. Confesso que minha ansiedade me fez atropelar os juízos, incomodei muita gente e, com meu complexo perfeccionismo, não me satisfazia com nada que escrevia. Passei noites em claro, me tornei um fumante compulsivo, aumentei dois graus nos olhos por causa das noites mal dormidas e permanente atenção voltada para o computador, perdi oportunidades de novos amigos. Foi uma dureza. 

Até que, numa quinta-feira, num fim de tarde na Síria, enquanto eu estava na fila do supermercado, uma reporter atônita, muito nervosa informava aos seus telespectadores sobre um bombardeio no interior do país. Instantaneamente, toda "a feira" silenciou. Homens, inconsoláveis, não tinham forças para segurar o maxilar; mulheres, nervosas,  choravam discretamente; crianças, desentendidas, sacudiam as mãos dos pais perguntando o por quê de tanto de fogo na TV. O medo se entranhou no mercado e o povo não se movia. A Guerra chegou outra vez.

Minha primeira reação aquilo tudo foi medrosa, obviamente. Mesmo sendo um leitor assíduo, estudioso da História, tão íntimo da Geografia da Guerra, era a primeira vez que a ameaça estava ali tão perto. Em seguida, achei que todos aqueles consumidores eram meus personagens e o anúncio da guerra, meu primeiro enredo. Mas eis que apareceu o bilhete guardanapo e alterou um pouco minha matéria. 

Ainda sem entender bem o que era aquela situação de gente morrendo a poucos metros, caminhei até uma lanchonete, tomei uma água, depois pedi um café e comecei a fazer minhas anotações. Minha primeira matéria seria uma narração de todas aquelas emoções; depois preencheria com as estatísticas que assombram os leitores da guerra: aqueles números que crescem assustadoramente, que comparam mortes com esperança, que insinuam política de paz...números, gráficos, a economia pragmática no furor de sua função. 

No meio disso, um rapaz na minha frente saiu, depois de uma longa estada na lanchonete, Saiu meio apressado, confuso, distráido com alguma tristeza íntima. Sem tempo para chamá-lo de volta, vi que ele deixou ficar na mesa um pequeno guardanapo que, de longe, percebi que tinha sido anotado. Não resisti e fui até lá para ler. 

Minha mãe, 
Espero que o correio tenha vida pra te levar este bilhete. Não tenho tido muito tempo para escrever cartas, porque são longas, Me sobram apenas estas curtas mensagens. A faculdade está parada, mas ainda continuo sonhando em ser professor de literatura. Soube ontem pela TV que bombardearam nossa cidade vizinha. Calma, mãe. Estou chegando e vou retirá-la daí, em paz, em vida, suave como a senhora sempre foi comigo, desde pequeno. Diga ao meu irmão mais novo que não tenho medo, que seja forte. Me responda neste endereço. Caso precise de dinheiro, me escreva da mesma forma. Arrumarei um jeito de bancar-lhe um socorro. O papel está no fim. Espero reencontrá-la em breve. Te amo. 

Assim que terminei de ler estas palavras, suei frio. Imaginei o que se passava na cabeça daquele rapaz, fiquei tentando sentir a dor dele, a saudade dele, a agonia de rever a mãe, voltar ao ninho dos irmãos. De viver em paz. Imaginei que ele quisesse tomar uma sopa mais quente, deitar numa cama macia, ler um bom livro de sua literatura preferida, ouvir uma música, conversar leseiras com vizinhos, jogar bola com os amigos, beijar a mãe com a certeza de que voltará a beijá-la. Fiquei a imaginar que, infelizmente, por descuido, algum soldado poderia assassinar aquele bilhete, no meio do caminho, e deixar a saudade desinformada dos dois.
No quarto do hotel, pensando tudo isso, percebi que era essa minha missão naquele lugar tão sem cor, tão sem vida. A minha missão era de paz durante aquela guerra: era contar a vida, narrar o brilho da vida entre os escombros, os estilhaços da sanidade humana. Era narrar que há beleza além da morte. Perceber a fulgás esperança na terra de quem tem medo constantamente.




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