domingo, 13 de janeiro de 2013

Meu escritor favorito em apuros.


Jamais esconderia que tenho meu lado tiete. Claro, também sofro problemas comuns e mortais. A diferença básica é que por quem nutro um fanatismo tímido e silencioso a humanidade sequer indicaria ao posto de funcionário do mês. Pacatos, mas eficientes ao meu modo de ver as coisas, meus favoritos caminham estradas alternativas na jornada da vida.

Uma vez não contive a emoção quando enxerguei, de longe, um volante do Santa Cruz. Cutuquei a querida Lia, que torce, sem a mínima informação, para o Sport, e apontei para o craque do meu clube. Ela, assumindo o perfil do adversário indiferente, fez cara de como se o grande volante não jogasse nada. “Peraí, pô”. É o volante do Santa Cruz. “Você tem ideia de quantas bolas ele evitou de chegar a grande área tricolor?”, perguntei indignado. Sem dar brechas, mandei outra: “você sabe que, depois dos atacantes, ele é o artilheiro do clube?”.

Não teve jeito. Era como descrever uma cor pra quem não enxerga. Sou tinhoso com essas coisas de reconhecer pequenas contribuições ao mundo, garimpar bons e apagados talentos. Na literatura, já não sofro muito disso porque também não há uma competição às claras entre talentos nas letras. A disputa fica por nossa conta, ácidos e impávidos fãs competidores.
Compramos brigas a todo momento quando nosso ídolo entra numa roubada. Inventamos histórias, alteramos documentos de identificação, tomamos sereno em filas enormes ou derretemos – como é costume nas últimas semanas – num sol recifense.

Acontece que a literatura ultrapassou suas fronteiras instrumentais e se agasalhou na rede mundial de computadores. Novos suportes, nova linguagem, que também nos levam a outra relação com o nossos ídolos escritores. O meu, por exemplo, escreve daqui do Recife. De forma velada, ele preenche sua intimidade como se fosse uma redação de utilidade pública. Forma opiniões com convicções aparentadas com desabafos que permitem essa dicotomia entre admiradores e detestadores de sua obra.

Acontece que, de tanto entender o íntimo do meu escritor favorito, e o fato dele morar na minha cidade também contribui, tenho o privilégio de ocupar os mesmos espaços que ele olhou e escreveu. Mais fascinante ainda é você estar no momento exato em que alguma coisa o inspirou para um novo texto. Ele dá um gole na cerveja, tira o bloquinho, dá uma olhada para o Rio Capibaribe, com aquele olhar profundo mesmo, e começa a anotar de mansinho algum texto. Vai ali deslizando o lápis, franzindo a testa como se estivesse impressionado com aquela ideia que nasceu de repente.

Infelizmente, essa emoção de ser quase um vizinho do escritor favorito tem outra face da moeda. Sem falar na angustiante preocupação de você se transformar em um objeto observado por ele, num surto egocêntrico-narcisístico, existe a tensa condição de você ver seu escritor em apuros.

A cena é ridícula. Seu escritor favorito está embriagado, mas tem que levar uma amiga mais bêbada ainda pra casa. Ele a segura pelo braço, tenta ampará-la diante do rodeio alcóolico, mas ela não se contém. Berra na rua, abraça desastrosamente os amigos, atrasa a volta para casa do meu escritor favorito. Eu sinto que ele está preocupado, nervoso, constrangido e, por consequência, indefeso. Sei porque reconheço na sua reação toda a sua obra virtual, suas crônicas, seus contragostos.

Penso em me levantar, passar um carão na moça inconveniente, mas uma sensação me assalta. Reconheço que essa parcialidade na história pode me custar uma participação indiscreta na próxima crônica do meu escritor favorito.

Tento esquecer a situação voltando ao assunto da minha mesa, mas o meu escritor favorito está em apuros. A moça bêbada e chata aumenta o escândalo. A cidade toda sabe as intenções dela para 2014. O meu Tolstói recifense, colecionador de jornais e revistas, protege com todo carinho sua nova aquisição. Tem uma face triste, inconsolado. Penso em ajuda-lo, mas desisto, de novo.

Ele some. Espero que ele tenha resolvido o problema da moça cheia de álcool. Voltei para a minha cerveja, para os meus amigos. Em silêncio, fingia ouvir atentamente ao novo assunto da mesa, mas, por dentro, estava me recompondo daquela aventura pela qual meu escritor favorito dará risos e esquecerá em dois dias.

Risos que seriam incontroláveis aos meus amigos se eu tentasse explicar a adrenalina que passei naqueles breves, mas profundos e quase violentos cinco minutos. Passei a odiar a moça. Passei a imaginar se o meu escritor seguiria à risca as recomendações para se recompor daquele momento tão comum na boemia do Recife.

Foi um momento triste, como também o é em outros momentos, com outras formas de importunar seu ídolo. Foi da mesma forma quando eu vi Renatinho, o lateral esquerdo do Santra Cruz, quase queimar a boca comendo um croissant além do ponto , fervendo depois do micro-ondas aqui na padaria perto de casa. Seria da mesma forma como eu ficar sabendo que Chico Buarque tá caminhando em Boa Viagem, resolveu sentar na areia e ninguém o serviu aquele balde cheio de Skol gelada. É como aquela professora velhinha do primário, por quem você aprendeu a conservar uma admiração, ser levada pela multidão sem freio da conde da Boa Vista.

O instinto é preservar, cuidar como algo seu. Intimidar os desavisados mostrando que por ali passa alguém importante para a humanidade, como seu Alcides, jardineiro dos bons, cuidadoso da raiz ao fruto, assim como seu Alexandre, porteiro que só conhece adjetivo positivo para impulsionar suas noites. A malícia do fã é policiar os passos de quem admira
Por isso, a minha saída foi escrever. Aprendi que é uma forma de desabafo. Aprendi com meus ídolos da literatura. Ninguém os admira, mas eles merecem, com todas as honras, a importância de todos os títulos oferecidos pelo mundo. Só não merecem a fama descartável, repleta de admiradores também descartáveis. Por isso escrevo para vê se criamos uma justa homenagem aos verdadeiros ídolos desavisados da humanidade.

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