Jamais
esconderia que tenho meu lado tiete. Claro, também sofro problemas comuns e
mortais. A diferença básica é que por quem nutro um fanatismo tímido e
silencioso a humanidade sequer indicaria ao posto de funcionário do mês.
Pacatos, mas eficientes ao meu modo de ver as coisas, meus favoritos caminham
estradas alternativas na jornada da vida.
Uma
vez não contive a emoção quando enxerguei, de longe, um volante do Santa Cruz.
Cutuquei a querida Lia, que torce, sem a mínima informação, para o Sport, e
apontei para o craque do meu clube. Ela, assumindo o perfil do adversário
indiferente, fez cara de como se o grande volante não jogasse nada. “Peraí, pô”.
É o volante do Santa Cruz. “Você tem ideia de quantas bolas ele evitou de chegar
a grande área tricolor?”, perguntei indignado. Sem dar brechas, mandei outra: “você
sabe que, depois dos atacantes, ele é o artilheiro do clube?”.
Não
teve jeito. Era como descrever uma cor pra quem não enxerga. Sou tinhoso com
essas coisas de reconhecer pequenas contribuições ao mundo, garimpar bons e
apagados talentos. Na literatura, já não sofro muito disso porque também não há
uma competição às claras entre talentos nas letras. A disputa fica por nossa
conta, ácidos e impávidos fãs competidores.
Compramos
brigas a todo momento quando nosso ídolo entra numa roubada. Inventamos
histórias, alteramos documentos de identificação, tomamos sereno em filas
enormes ou derretemos – como é costume nas últimas semanas – num sol recifense.
Acontece
que a literatura ultrapassou suas fronteiras instrumentais e se agasalhou na
rede mundial de computadores. Novos suportes, nova linguagem, que também nos
levam a outra relação com o nossos ídolos escritores. O meu, por exemplo,
escreve daqui do Recife. De forma velada, ele preenche sua intimidade como se
fosse uma redação de utilidade pública. Forma opiniões com convicções
aparentadas com desabafos que permitem essa dicotomia entre admiradores e
detestadores de sua obra.
Acontece
que, de tanto entender o íntimo do meu escritor favorito, e o fato dele morar
na minha cidade também contribui, tenho o privilégio de ocupar os mesmos
espaços que ele olhou e escreveu. Mais fascinante ainda é você estar no momento
exato em que alguma coisa o inspirou para um novo texto. Ele dá um gole na
cerveja, tira o bloquinho, dá uma olhada para o Rio Capibaribe, com aquele
olhar profundo mesmo, e começa a anotar de mansinho algum texto. Vai ali
deslizando o lápis, franzindo a testa como se estivesse impressionado com
aquela ideia que nasceu de repente.
Infelizmente,
essa emoção de ser quase um vizinho do escritor favorito tem outra face da
moeda. Sem falar na angustiante preocupação de você se transformar em um objeto
observado por ele, num surto egocêntrico-narcisístico, existe a tensa condição
de você ver seu escritor em apuros.
A
cena é ridícula. Seu escritor favorito está embriagado, mas tem que levar uma
amiga mais bêbada ainda pra casa. Ele a segura pelo braço, tenta ampará-la diante
do rodeio alcóolico, mas ela não se contém. Berra na rua, abraça
desastrosamente os amigos, atrasa a volta para casa do meu escritor favorito.
Eu sinto que ele está preocupado, nervoso, constrangido e, por consequência,
indefeso. Sei porque reconheço na sua reação toda a sua obra virtual, suas
crônicas, seus contragostos.
Penso
em me levantar, passar um carão na moça inconveniente, mas uma sensação me
assalta. Reconheço que essa parcialidade na história pode me custar uma participação
indiscreta na próxima crônica do meu escritor favorito.
Tento
esquecer a situação voltando ao assunto da minha mesa, mas o meu escritor
favorito está em apuros. A moça bêbada e chata aumenta o escândalo. A cidade
toda sabe as intenções dela para 2014. O meu Tolstói recifense, colecionador de
jornais e revistas, protege com todo carinho sua nova aquisição. Tem uma face
triste, inconsolado. Penso em ajuda-lo, mas desisto, de novo.
Ele
some. Espero que ele tenha resolvido o problema da moça cheia de álcool. Voltei
para a minha cerveja, para os meus amigos. Em silêncio, fingia ouvir atentamente
ao novo assunto da mesa, mas, por dentro, estava me recompondo daquela aventura
pela qual meu escritor favorito dará risos e esquecerá em dois dias.
Risos
que seriam incontroláveis aos meus amigos se eu tentasse explicar a adrenalina
que passei naqueles breves, mas profundos e quase violentos cinco minutos. Passei
a odiar a moça. Passei a imaginar se o meu escritor seguiria à risca as
recomendações para se recompor daquele momento tão comum na boemia do Recife.
Foi
um momento triste, como também o é em outros momentos, com outras formas de
importunar seu ídolo. Foi da mesma forma quando eu vi Renatinho, o lateral
esquerdo do Santra Cruz, quase queimar a boca comendo um croissant além do
ponto , fervendo depois do micro-ondas aqui na padaria perto de casa. Seria da
mesma forma como eu ficar sabendo que Chico Buarque tá caminhando em Boa
Viagem, resolveu sentar na areia e ninguém o serviu aquele balde cheio de Skol
gelada. É como aquela professora velhinha do primário, por quem você aprendeu a
conservar uma admiração, ser levada pela multidão sem freio da conde da Boa
Vista.
O
instinto é preservar, cuidar como algo seu. Intimidar os desavisados mostrando que
por ali passa alguém importante para a humanidade, como seu Alcides, jardineiro
dos bons, cuidadoso da raiz ao fruto, assim como seu Alexandre, porteiro que só
conhece adjetivo positivo para impulsionar suas noites. A malícia do fã é policiar
os passos de quem admira
Por isso, a minha saída foi escrever. Aprendi que é uma
forma de desabafo. Aprendi com meus ídolos da literatura. Ninguém os admira,
mas eles merecem, com todas as honras, a importância de todos os títulos
oferecidos pelo mundo. Só não merecem a fama descartável, repleta de
admiradores também descartáveis. Por isso escrevo para vê se criamos uma justa
homenagem aos verdadeiros ídolos desavisados da humanidade.
Coisa mais linda da vida ❤
ResponderExcluir