quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Tirando a poeira da história.

O Brasil inteiro promove agora em agosto um cinematográfico sopro em sua memória. Consagrado país da amnésia, em virtude de seus atropelos éticos e políticos, investe, sem pudor, na lembrança de seus mestres literários. Uma dupla injeção de ânimo. Lembrar e cultivar, muito embora as duas coisas possam servir ao mesmo propósito, uma palavra substituir a outra em momentos de ocupação vocabulária.

Mas o Brasil vem surpreendendo com suas mais recentes preocupações, fazendo com que Bienais - mesmo que o objetivo seja o lucro - comemorações de centenários e lançamentos dividam espaço nos jornais e na tv com homicídios, roubos e desvio de conduta de políticos irresponsáveis. Sei muito bem que não é uma boa companhia, mas ameniza o susto, melhora o jantar e o sono chega mais leve, ou o dia começa mais agradável. 

Muitos festivais de literatura, palestras, peças e filmes exibem-se para homenagear um escritor, um homem ou uma mulher que soube acalentar almas com um verbo, indicar caminhos em momentos inoportunos, sacudir inércias e cultivar ideias para um mundo melhor. Nada mais justo do que homenagens, aos vivos e aos mortos. 

Como nos alertou Pilar Del Río, esposa do já saudoso José Saramago, sobre as lembranças de Jorge Amado: "não se comemora o centenário de um escritor, celebram-se os cem anos de vida de um ser humano que a qualquer momento pode aparecer na esquina"

Cem anos passam rapidinho dentre de um ano comemorativo e, além da nostalgia, a sensação de que algo escapuliu, uma limitação da memória em contemplar a grandiosidade de alguém que fez o simples, teima em persistir. Em 2012, duas figuras são celebridades por, se estivessem vivas, comemorar cem anos. Um centenário. Tanto o baiano Jorge Amado, autor de palavras de peito aberto, quanto Nelson Rodrigues, o recifense cedido muito cedo ao Rio de Janeiro, que deixava o mundo arisco com suas verdades inconfessáveis, matam as saudades de seus antigos admiradores. 

Reaparecem para a jovem que despertou para literatura com o livro Capitães de Areia,amargamente sugerido pelo professor de português da oitava série e depois lido com uma paixão incontrolável. Reaparecem para os discretos porteiros de prédios da classe média recifense, que folheiam edições de Nelson Rodrigues vendidas num sebo mais perto, exatamente contextualizado, favorecendo vertigens e identidades. Reaparecem nas adaptações da TV, movimentando enredos extraídos da realidade, de um pedaço de verdade que acontece no dia-a-dia, no calor das ruas, no furor do tesão, na afiada raiva que explode no conviver humano.

Reaparecem orgulhosos nas novas estantes de Bibliotecas Comunitárias, metamorfoseando mundos, iluminando pequenas ideias e contribuindo nos primeiros passos. Reaparecem incentivando novas visões sobre a história, cutucando historiadores, refazendo juízos de advogados, repensando corações de amantes. Reaparecem nas emergências dos hospitais, retomando o fôlego da esperança  em um médico enfadado, um sopro de vida a um paciente com câncer. Reaparecem nas repartições públicas, ocupando os intervalos, lidos ao aroma do café.

Reaparecem citados entre brindes e sorrisos, entra abraços e choros, lembranças e expectativas numa mesa de Bar. Num comentário soberbo, lesado de precisão, mas coberto por boas intenções, observações pertinentes para a resolução das tristezas da vida. Reaparecem num rompante: "Assim disse Jorge Amado", "Oxe, Nelson Rodrigues disse uma vez..." Reaparecem com palavras convertidas em imagens pela inspiração do fotógrafo. 

Eles reaparecem, cheios de pompas, glórias, sorrindo. Reaparecem em novas capas, em papéis reciclados. Reaparecem nas prateleiras, no descortinar das poeiras,  retomam os tablados convertendo a - ainda - pequena plateia do teatro. Ressurgem, com um sorriso na ponta da boca, com as mãos no bolso, para nos fazer olhar diferente para a Salvador de hoje e para as ruas do Rio de ontem. 

Sacrificam-se esses homens, a preço de sua reclusão reflexiva, para reaparecer neste mundo, encoberto de incertezas, e nos ensinar a reescrever nossa história. Um brinde aos 100 desses "pequenos" importantíssimos nomes de nossa literatura: Nelson e Jorge! 

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