quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Aquela mesa.

Sou do tipo sonhador. Não deixo o futuro me escapar. Escalo situações, planejo os sorrisos, prevejo os amigos e desenho o amanhã. Sou do tipo que não desperdiço o presente: consolido os antigos futuros. 

Não adianta" ficar" sem pensar em namorar, começar pensando no fim, casar imaginando a comunhão de bens, torcer sem acreditar, mentir de verdade, tomar banho de roupa. Tudo tem que ser feito como se estivesse lançando a sorte grande, sentindo a sensação de preencher o vazio, de não largar a esperança sozinha numa estrada de ciladas.

Tudo se resume no se doar, na entrega, na vertigem. Foi assim, dentro de um sonho, que descobri o grande significado da mesa. Isso, a mesa.  Um dia desses achei que poderia ser meu próprio arquiteto e, durante uma incontrolável vontade de pensar a casa própria do futuro, me danei a desenhar a maquete da minha residência: pisos, móveis, estantes, cozinha, lugar das plantas, o espaço do cachorro, discos, tvs, quarto dos meninos e a mesa da sala. Tudo muito bem dimensionado. E, de repente, notei que durante todo o planejamento, me preocupei exaustivamente com a  mesa, a danada que ficaria na sala, com cinzeiro, cadeiras rebaixadas 1cm, próxima às estantes dos livros e dos discos. .

Quem já casou deve saber que, na hora de montar a mobília, pouco se pensa na mesa. Compra-se tudo, menos a mesa. Ah! Um detalhe: o casamento que falo é de classe média baixa razoável. Compra-se de tudo, menos a mesa. Descola qualquer uma com um cunhado, pega emprestado uma de plástico com a marca de cerveja  num Bar mais íntimo - geralmente, onde se faz um fiado - , ou então a sogra disponibiliza a primeira mesa do casamento dela, que tava encostada no quintal, guardando as panelas velhas ou servindo de poleiro para as galinhas durante o passeio. Mas, no final das contas, nenhuma atenção, um mínimo cuidado.

Acontece que, curiosamente, depois de tanto distanciamento, depois desse desapego cruel, cria-se uma afinidade, um tênue cuidado. Aos poucos,desenvolve-se uma mania. As falhas do chão da casa já se amoldam às pernas da mesa, ora com uma gentil contribuição de uma tampa de Fanta KS ou o próprio vazio do buraco acolhe carinhosamente a estrutura da mesa. Rola um sintonia entre esquecidos e humilhados: a mesa compartilha suas agruras de um rebento desprezado, enquanto o chão argumenta que o pior é ser pisado mesmo sendo decorado com uma cerâmica, um carpete. Tanto cuidado para um pé desatencioso.

Depois de um tempo percebi que a mesa merecia o cuidado que recebeu. O mundo dos domicílios comete uma injustiça com este móvel diante da pompa das novatas LCDs/Plasma, dos Iphones, das geladeiras e dos Splinters. Nenhum desses segura a ponta do dono da casa como a senhora mesa.

Na hora de fazer as contas, no meio da madrugada, contendo as dores de cabeça vindas da preocupação, lá está a mesa exposta ao sacrifício de não dormir para que você acerte os cálculos das dívidas. Assim que você termina a contabilidade, o sol já nasce e as crianças acordam, enchiqueirando-se ao redor mesa, depositando o peso da indiferença em quem já serve o café da manhã.

É a mesa quem reúne, quem junta os diferentes, quem ameniza os entraves, as raivas. É a mesa, quando não o travesseiros, quem enxuga as lágrimas de um fim de casamento, de um luto como cantou Nelson Gonçalves.. É a mesa a primeira a concordar com uma festinha de comemoração pela aprovação no vestibular, pelo aumento de salário, pelo novo emprego ou simplesmente para matar a saudade.


É a mesa quem suporta as roupas sujas ou as limpas, que estão esperando para se engomar. É a mesa quem salva o estudante relapso ou o que sofre de déficit de atenção em época de prova; é quem segura as pontas da ansiedade na hora dos estudos, da monografia. É quem recepciona visitas, quem acomoda o avô na hora da espera. A mesa é quem sustenta um dos mais bonitos arranjos da sala, da casa, do ambiente. E ainda assim ela é esquecida, trocada, envelhecida pelo tempo, mofada pelo desprezo. 

Mesmo depois de usada, depois de amargurar os maiores ciúmes, ela se conforma com o quintal ou o quarto de depósitos, junto às tralhas e ao sufocante cheiro de inseticida. Conforma-se porque sabe que outra chega e assim a geração continua, o objeto permanece, silenciosamente, como o mais importante da casa. O charme da mesa é ser discreta.



Um comentário:

  1. "...o sol já nasce e as crianças acordam, enchiqueirando-se ao redor mesa" Lindo.

    Fico imaginando daqui a alguns anos ao redor dessa mesa, que, tenho certeza, acolherar os amigos para conversais agradáveis e uma boa cerveja.

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