terça-feira, 30 de junho de 2009

Confraria do povão II


Fazia tempo que eu não passava na mercearia de Nilo. Embora seja fictícia, amigos, digo-lhes que a Confraria do Povão, aqui criada, é uma miscigenação de tantas outras que residem por aí e da cultura zona-oestina. Ontem mesmo, aproveitei o tempo livre e passei por lá. Descobri muita coisa, inclusive a reforma que seu Nilo criou onde será um espaço dedicado aos produtos veterinários. Está lá, bem postada, bonitona toda. Ele tem um bom gosto. Fui entrando timidamente e encontrei um Nilo atarefado, limpando o mostruário e ouvindo Amado Batista em seu rádio maravilhoso que sobrevive há séculos em cima daquela estante. Quando me vê entrando, vai logo abrindo um sorriso e sai de trás do balcão para me dar um caloroso abraço.


-Nunca mais apareceu, rapaz. Como anda a vida?
- Falta tempo, amigo. Mas vou levando tudo na paz.
- Sei... É o mesmo argumento. Sempre os melhores frequentadores alegam isso.
- Deixe disso, rapaz.. -

Nilo abriu um sorriso carinhoso, voltou para o seu serviço, enquanto eu me equilibrava na cadeira que fazia fila com outras três em frente do meu querido amigo.

- Vai de quê?- disse Nilo.
- Um café, para despertar dessa maresia.

O velho relógio QuartZ marcava 11h50 e tava perto de começar o jornal da Tv. O dono do estabelecimento gosta de ver os programas policialescos, e eu sempre tento o conscientizar para ver outros canais. Mas ele sempre diz que é preciso ver para saber o que acontece. A realidade do povo está ali. Eu acabo não concordando e ele permanece vendo os destaques do IML, os boletins de ocorrência. Antes de dar atenção à Tv, fico observando os quadros na parede e vejo que tem muita história para contar. Tem foto do clube Inter do 15, time que Nilo jogou na adolescência, 45 anos atrás. Tem foto de um Recife antigo, lá pelos ventos dos anos 80.

- Eita, tempo bom, não?
-Verdade. Tempo em que menino jogava bola, peão, empinava pipa, gostava de bola de Gude.
- O que mudou, hein?
- Muita coisa, home. Os meninos só querem saber de safadeza. Tudinho aí com 15,16 anos já tão com bucho. É culpa da Tv, que fica mostrando Safadeza a qualquer hora. Já pensou?
- O, Nilo. Tu ainda guarda essa foto aqui?
- Mas, vou perder?
- Poeta Alberto...Quando eu trouxe ele aqui, trabalhava no Diário. Época boa.

Dei mais um gole relembrando da época onde eu passava imensos domingos dentro daquela redação ouvindo o toca fita de Severino Maia tocando Altemar Dutra, as baforadas do cachimbo de Helô Lucena - grande jornalista de economia - e eu ficava esperando qualquer informação de um posto policial para dar destaque no jornal de segunda. Lembro o dia que Frei Damião morreu e foi aquela agonia. Os tic tacs não pararam nem tão cedo. Claro que também passei ociosas tardes naquele recinto, muitas vezes escrevendo cartas aos amigos. Mas agora volto à realidade quando um rapaz entra apavorado, pedindo uma cerveja a Nilo.

- Nilo, uma Antártica bem gelada, tipo aquela que você guardou para Dona Izaura.
- Primeiro, Izaura não bebe. Segundo, aqui só tem gelada, deixe de pressa.
- Mas rapaz, pense numa agonia tá o Recife. É carreata vermelha pra tudo que é lado.
- Vixe, rapaz. Nem me fala. Esse ano nem votar eu fui.
- Mai, mai, Por que, Nilo? Que conversa é essa?
- Eu mermo não vou votar em cabra fela-putista e ladrão. Tás louco? De dois em dois anos é o mesmo converseiro, e o povo se lascando.
- Deixe me intrometer, colegas...
- Diga..
-Eu concordo com o Nilo. A gente já não sei há quanto tempo tá votando e nada se muda. Temos que nos ausentar, senão vamos ser cúmplices da safadeza. Ter preferência partidária, hoje em dia, é como tu ver tua casa ser assaltada e não fazer nada. Mas há de ser ver também que não é somente se ausentar, tem que trabalhar e lutar por uma causa justa de mudança no país.
- É verdade...Desce outra aqui pro amigo.
- Não, não bebo.Um café mesmo, Nilo.
- Pronto, um café.
- Olhe, aqui está. Se to dizendo, rapaz, é porque eu sei. Só tem safadeza nessa política.

Nilo tinha uma força argumentativa muito forte, talvez experiência de comerciante, mas nessa ele tinha total razão. Embora que com muita arrogância, tinha a verdade na ponta lingua, e não hesitava em falar. Nilo me ganhou como amigo na eleição de Jarbas, em 1998. Eu tinha votado em Arraes. Lembro que Nilo ficou contente que só com a minha intenção, afinal era um defensor de Miguel Arraes até o fim. Mas depois que viu o resultado, fechou por uma semana a venda.

Eu trabalhava ainda no Diário, porém na editoria de política, e Nilo leu minha matéria falando de Jarbas, exaltando sua vitória e grande desempenho nas urnas. Quando cheguei lá, ele disse-me: você tá com muita conversa por lado de lá. Fechou cara e só ficou tranqüilo depois que eu expliquei a ele que tudo aquilo era uma força do trabalho. 10 anos se passaram e hoje eu vejo um Nilo autêntico, fervoroso na política e super crítico, com uma força revoltada muito grande eJustificar sem expectativa no processo eleitoral. Ele é o verdadeiro retrato do povo de Recife, porém em pequeno número.

E já começando a tardinha, resolvi sair da Mercearia e voltar para casa. Já tava na hora de dormir aquele cochilinho da tarde, num balançar da rede, para depois voltar ao dia, lá pelo fim da tarde. Depois de uma boa conversa sobre o progresso e a política do Recife, lá vai pela rua da Zona Oeste um nobre admirador da prosa alheia, onde engorda-se com quilos de conhecimento em pequenas porções de simplicidade.

2 comentários:

  1. "Grande Seu Nilo... parabéns para ele, pelo modo dele,por tudo o que ele viveu... e que reze por nós, oh jovens do futuro sem futuro"
    Ainda seremos gente de verdade Afonso? xero grande!

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  2. Adorei o "Jovens do futuro sem futuro".

    Quem foi que disse isso? Talvez o dono da esperança tenha sido o mesmo criador dos obstáculos.

    Cheiro, Mila!

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